As Profecias de Cage por Hermano Vianna

As profecias de Cage *

O compositor, que teria completado 100 anos em setembro, sentenciou em 1927: “A América Latina é a terra do futuro”.

John Cage teria feito 100 anos no dia 5 de setembro passado. Morreu há uma década.

O mundo ficou bem mais previsível sem os desafios radicais que ele nos lançava. Vivienne Westwood (da camiseta do Assange) certa vez declarou: “Um mundo sem Malcolm McLaren seria como um mundo sem Brasil”. Acrescento: um mundo sem o Brasil (que eu quero) seria como um mundo sem John Cage. Então (eu quero) John Cage está vivo. Sério: muita coisa que ele profetizou há quase um século, e parecia loucura, já é nosso cotidiano. Ou quase.

Em 1927, aos 15 anos, Cage ganhou prêmio em concurso de oratória. Seu discurso no Hollywood Bowl, representando a Los Angeles High School, se intitulava “Outros povos pensam” e continha profecia bombástica (pré-Zweig): “A América Latina é a terra do futuro”. Termina usando o termo “americanos” para se referir a latinos e anglo-saxões juntos, uma união que ensinará ao mundo “a ciência de apreciar, respeitar e simpatizar com os Outros”.

Não era totalmente ingênuo. Atacava a ocupação da Nicarágua e os empréstimos dos bancos americanos para a Bolívia. Aprovava o uso do poder militar do Tio Sam para defender a Venezuela da Alemanha ou Cuba da Espanha. O Norte poderia ensinar autogoverno, soberania para o Sul. Lembro: era texto de adolescente. Mesmo assim continha toques geniais. Surpreende especialmente o parágrafo que pede para os Estados Unidos calarem a boca, deixarem de produzir qualquer som: “Nós deveríamos ficar quietos e silenciosos, e teríamos a oportunidade de aprender que outros povos pensam”.

Talvez tenha sido a primeira vez em que Cage anunciou a importância do silêncio. Como vai nos ensinar depois, em inúmeras obras (incluindo o livro “Silêncio”), silêncio não é ausência de sons. Em entrevista de 1966, tudo fica claro: “Silêncio é todo som produzido sem a nossa intenção. Não há algo como silêncio absoluto. Portanto o silêncio pode muito bem incluir barulhos, e o volume aumentará no decorrer do século XX. O som dos jatos, das sirenes etc. Por exemplo, agora, se ouvíssemos os sons vindos da casa ao lado, e não estivéssemos falando nada, diríamos que isso seria parte do silêncio, não diríamos?”

Ficar em silêncio nos faz ouvir o barulho do mundo como música. Com Cage, nossos ouvidos mudaram definitivamente. E o campo musical se ampliou ao infinito, ao acaso.

O texto mais influente de Cage foi escrito dez anos depois do discurso do Hollywood Bowl. Chama-se “O futuro da música: credo”. Começa com a seguinte profissão de fé, hoje realidade banal: “Acredito que o uso do barulho para fazer música vai continuar e aumentar até que cheguemos à música produzida com a ajuda de instrumentos elétricos”. Repare bem: era 1937, as guitarras elétricas eram invenções nerds, não havia ainda sintetizadores. Cage estava fascinado pelo “som de um caminhão a 50 milhas por hora” ou pela “estática entre estações”. Não queria usar esses sons como efeitos, e sim como instrumentos musicais. Conseguiu. Fez mix sonoro em 1952 ou obra com agulhas de discos em 1962, algo que no “futuro” virou rotina dos DJs de hip-hop, techno, house até “Gangnam style”.

Como perguntou o crítico Peter Yates: Cage “é uma inteligências mais decisivas de nosso século criativo, uma mente tão não convencional que logo sua própria não convenção deverá ser a convenção?” A resposta é sim, há bastante tempo. Exemplo dado pela historiadora da arte Barbara Rose: “Para traçar a genealogia da arte pop, é preciso conhecer a atmosfera na qual ela nasceu. Essa atmosfera foi gerada principalmente pelo compositor John Cage, cujos ensaios e palestras têm sido instrumentais para formar a sensibilidade de alguns dos mais importantes compositores, coreógrafos, pintores e escultores jovens trabalhando hoje.”

Cage não desperdiçou seu tempo no mundo. Ele não trabalhava com a negatividade, com a reclamação. (Mesmo pensadores interessantes — como Nicolas Bourriaud — que tentam se distanciar dos clichês do discurso da “dimensão crítica”, acabam elogiando os artistas que “resistem” ou “confrontam”.) Seguindo Charles Ives, arte “útil” é aquela que fortalece (inclusive fisicamente) as pessoas, tornando-as capazes de perceber mais do que perceberam até agora.

Minha coluna também tem missão positiva, de fortalecer gente que abre as portas da nossa percepção, principalmente quem tem pouco espaço nos jornais. Mesmo falar de Cage é desvio de rota. Com causa nobre: todo este texto é para fazer propaganda do Festival Multiplicidade, que na próxima quinta-feira apresentará sonatas de Cage tocadas pelos pianos preparados da PianOrquestra, do Rio, em parceria com Pedro Rebello e Justin Yang, do Centro de Pesquisa em Artes Sonoras, de Belfast.

Texto integral da coluna de Hermano Vianna, publicada no sábado no jornal O Globo.

Pedro Rebelo sobre o espetáculo “Tributo a John Cage”

Pedimos para Pedro Rebelo, diretor do SARC e um dos nossos artistas de amanhã, falar um pouquinho mais sobre essa inusitada performance de amanhã.

A apresentação será parte da programação do Festival Multiplicidade 2012 no Oi Futuro Flamengo (22/11 às 20h) e vamos ter 2 pianos preparados seguindo as bulas de Cage.
Claro que existem algumas interpretações pessoais do manual de preparação de Cage, mas a três meses estão sendo realizados ensaios e debates com os 7 músicos envolvidos entre o Rio e Belfast.

No palco teremos estes 7 músicos virtuosos tocando individualmente e juntos, parte do Brasil (PianOrquestra) e parte do Pedro Rebelo, diretor do SARC, um Media Lab sonoro ligado a Queen’s University de Belfast incrivel que foi criado com a supervisão de Karlheinz Stokenhausen.

O repertório será baseado em Cage e seus discípulos: Arvo Part, Ligeti, Paert mas terão tambem releituras autorais inspirados nos preceitos dele.

No campo visual, tambem seguindo a inspirações das autorais partituras de Cage teremos o americano tambem ligado ao SARC, Justin Yang  se inspirando e recriando com novas tecnologias uma versão contemporânea de grafias musicais que servirão aos músicos ao longo do concerto. Um trabalho de webwork com animações geradas ao vivo.

O repertório do show (que ainda pode ter alguma pequena adaptação):

PianOrquestra – Perk – 4’31” (Mako, Claudio, Marina, Priscilla, Anne)
PianOrquestra Medley (Mako, Claudio, Marina, Priscilla, Anne)
Pedro Rebello – Netgraph – 10′ (Mako, Claudio, Antonio, Priscilla, Anne, Tatiana)
Justin Yang – Webworks – 10′ (Mako, Claudio, Antonio, Priscilla, Anne, Tatiana)
John Cage – Sonata I – 3′ 04″ (Antonio)
John Cage – Sonata V – 1’49” (Marina)
John Cage – Sonatas XIV e XV – 3’21” (Claudio)
Arvo Pärt – Für Alina – 1’29” (Claudio)
György Ligeti – Musica Riccercata – 3’50” (Marina)
Earle Brown – December 1952 – 2 (Antonio)
Peça colaborativa entre Pedro, Justin, pianOrquestra (Mako, Antonio, Priscilla, Anne, Tatiana e Claudio Dauelsberg)

Quem foi John Cage?

In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-11-21].
Texto original disponível em http://www.infopedia.pt/john-cage

John Cage foi um compositor norte-americano nascido em 15 de setembro de 1912, em Los Angeles, Califórnia.

Um dos mais controversos e influentes compositores do séc. XX, é considerado o pai do indeterminismo, corrente inspirada na filosofia budista Zen, que rejeita os princípios convencionais da criação musical, em favor de uma abordagem radical baseada na improvisação e na construção aleatória de sons.

Estudou composição com Henry Powell, Adolph Weiss e Arnold Schoenberg. Nos anos 30 deu início a duas das suas dedicações para toda a vida: as companhias de dança e acomposição para grupos de percussão. Durante esta década compôs Imaginary Landscape No. 1, uma das suas mais conhecidas obras.

Constructions (1939, 1940, 1941) foram três trabalhos para percussão, em que são utilizados objetos como latas de metal ou peças de automóvel.

Em 1938, inovou ao colocar vários objetos como parafusos e borrachas entre as cordas do piano paramodificar os sons do instrumento e assim sugerir uma orquestra de percussão. Este artifício ficou patente em trabalhos como Amores (1943) e Sonatas And Interludes (1948).

Outros trabalhos na década de 40 incluíram Imaginary Landscape No. 2 (1941) e The Perilous Night (1944),que foi composta para a companhia de dança do coreógrafo Merce Cunningham. Muitas das suas obras nosanos 40 foram compostas para acompanhamento de dança. O objetivo passava por produzir música e dançaseparadamente, sem conhecimento mútuo, até se juntarem no espetáculo. Esta ideia foi desenvolvida naapresentação simultânea das obras Aria e Fontana Mix (as duas de 1958).

Em 1949 foi-lhe atribuído um prémio pela Academia Nacional de Artes e Letras.

Em finais dos anos 40 sofreu a influência da filosofia budista Zen. Reduziu a importância musical docompositor, preferindo buscar a música no meio ambiente. Utilizou o silêncio como elemento musical.

Em Music Of Changes (1951) para piano, combinações de notas ocorrem numa sequência determinada pelosom de moedas agitadas, de acordo com o livro chinês Book Of Changes, Yijing.

Em Imaginary Landscape No. 4 (1951), o som provém da transmissão aleatória de doze aparelhos de rádio.Em 4’33” (1952), os executantes sentam-se silenciosamente perante os instrumentos, e os sons soltos quesão produzidos pelo ambiente constituem a música.

Outro trabalho que se destaca é Theatre Piece (1960).

Os seus trabalhos influenciaram um grupo de compositores de Darmstdt (onde Cage ensinou na década de50), incluindo Karkheinz Stockhausen, e as técnicas aleatórias de Lutoslawski. Por sua vez, Cage ganhou ointeresse pela música eletrónica – patente em Williams Mix (1952), Fontana Mix (1958), e Cartridge Music(1960) -, e em partituras gráficas, nas quais a notação musical convencional é substituída por símbolosespecialmente elaborados – tal como em Music For Carillon no. 1 (1952) – ou por imagens preexistentes -como em Renga (1976), onde são utilizados desenhos de Henry David Thoreau.

Nos últimos cinco anos de vida, Cage compôs mais de 60 obras, cujos títulos refletem o número deexcutantes envolvidos., tal como em Four, para quarteto de cordas (1989), Twenty-Six, para 26 violinos(1992), e 108, para uma grande orquestra (1991).
Os seus livros, compostos de conferências e contos, assumem por vezes os princípios de construçãoaleatória da sua música, destacando-se Silence (1961), A Year From Monday (1967), Empty Words (1979), eX (1983).

Em 1968 foi eleito para o Instituto da Academia Americana e para o Instituto de Artes e Letras. Em 1986recebeu o Doutoramento Honorário em Artes pelo Instituto das Artes da Califórnia.

Faleceu em Nova Iorque, a 12 de agosto de 1992.

PianOrquestra & Pedro Rebelo + Justin Yang – Tributo a John Cage

O Festival Multiplicidade apresenta amanhã um tributo ao centenário do nascimento do compositor americano John Cage, com os cariocas do PianOrquestra, ao lado de Pedro Rebello e Justin Yang, membros do SARC (Sonic Arts Research Centre), centro de pesquisas fundado sob a direção de Karlheinz Stockhausen, localizado em Belfast (Irlanda do Norte). Esse resgate da obra de Cage no concerto-homenagem pretende apresentar a bula de experimentações da música eletroacústica.

O programa destacará o chamado piano preparado e as diferentes abordagens de música indeterminada, que são elementos musicais decididos na hora da execução – duas contribuições da mente de vanguarda de Cage. Na hora, obras serão integradas num programa de criação de uma peça colaborativa exclusiva para o concerto. Serão sete músicos tocando dois pianos simultaneamente no palco do Multiplicidade.

Além de reverenciar as inovações de John Cage através de suas obras, o repertório – decidido ao longo dos últimos meses em uma troca constante entre Rio e Belfast – também traz peças de discípulos do compositor, como Arvo Part e Gyorgy Ligeti. No espetáculo, enquanto as obras são apresentadas, o americano Justin Yang cuidará do design visual gerando em tempo real grafias musicais inspiradas em partituras de Cage.

Quem fechará a noite será o DJ dinamarquês Tom Barfod*, integrante da banda WhoMadeWho, que traz músicas de seu novo trabalho solo Salton Sea.

* “A apresentação do Tomas Barfod conta com o apoio do Instituto Cultural da Dinamarca, instituição sem fins lucrativos ligada ao Ministério de Cultura da Dinamarca. Esta apresentação também celebra o lançamento da programação de música eletrônica da plataforma Dinâmica Dinamarquesa, que apresentará músicos dinamarqueses para o público brasileiro nos próximos anos, criando assim novas colaborações entre os artistas de ambos os países” diz Batman, curador do festival.

SERVIÇO

Multi_04_2012 > PianOrquestra & Pedro Rebelo + Justin Yang (SARC)

Nível 7 – 20h: Apresentação no teatro

Nível 1 – 21h: DJ set com Tomas Baford

Dia 22 de novembro (quinta-feira)

Local: Oi Futuro do Flamengo – Rua Dois de Dezembro, 63 (Rio de Janeiro)

Horário: às 20h no teatro: PianOrquestra + Pedro Rebelo + Justin Yang

Entrada: R$ 20,00 (com meia-entrada)

Capacidade do teatro: 84 lugares a cada sessão

Censura: Livre

info@multiplicidade.com

Curadoria: Batman Zavareze