Entre o silêncio e o barulho, os ecos de uma memorável noite de estreia do Multiplicidade 2017

MULTI-ESTREIA-16

Por Carlos Albuquerque

Quatro minutos e trinta e três segundos. Foi o tempo em que o Oi Futuro Flamengo pareceu suspenso no ar, como uma cena perdida de “Além da imaginação”, durante a estréia do Multiplicidade, na noite de sábado passado. Fora uma moça de óculos que resmungava de sua pipoca sem sal, todos os presentes ao debate sobre barulho e John Cage (1912-1992)- conduzido pelo curador Batman Zavareze e pela editora Isabel Diegues – se mantiveram, respeitosamente, em silêncio. Alguns giraram o pescoço, outros olharam o relógio, mas nenhum outro suspiro foi ouvido. No centro, de pé no hall do prédio, quase imóvel, segurando uma flauta longe da boca, o convidado Marcelo Brissac interpretava a anti-música de Cage – compositor norte-americano de vanguarda – como pedia o seu criador: em silêncio.

MULTI-ESTREIA-03

Acompanhada apenas pelos sons vindos da Rua Dois de Dezembro, onde na véspera tinha acontecido um ruidoso protesto contra a censura,“4’33” foi a trilha-sonora perfeita para a abertura de um evento instigado por tempos de muita gritaria e de ruídos propositais na comunicação. Estudioso da obra de Cage, um desafiador das convenções musicais, Brissac  contextualizou o   trabalho do artista, driblou boas provocações da platéia (“Se os músicos ficarem em silêncio, eles não vão ficar desempregados?”, perguntou alguém) e lembrou, com precisão, de uma de suas frases emblemáticas (“Quando ouvimos Beethoven e Mozart, vemos que eles sempre parecem os mesmos, mas quando ouvimos o som do trafego, ele sempre vai ser diferente” ).

MULTI-ESTREIA-05

De fato, o tráfego que aconteceu no local em seguida foi especialmente diferente.  A movimentação dos integrantes da Quasi-orquestra – formada por integrantes de instituições como Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica da UFRJ e Orquestra Sinfônica Nacional – se misturou com o barulho do público, que chegava para lotar o local. Posicionados e regidos pelo maestro Rafael Barros de Castro, os músicos iniciaram a apresentação com outra obra provocadora: “A despedida”, sinfonia do compositor austríaco Joseph Hadyn.

MULTI-ESTREIA-22

MULTI-ESTREIA-23

Composta em 1772 como um protesto de Hadyn e de outros músicos contra as péssimas condições de trabalho oferecidas pelo príncipe húngaro Nikolaus Esterhazy , a atualíssima peça teve seu caráter performático – ao longo de sua duração, os músicos costumam se retirar em silencioso protesto – radicalmente atualizado no Multiplicidade Em vez de se ausentarem, os integrantes da Quasi-orquestra – que igualmente sofrem com maus empregadores  – se espalharam pelos oito andares do prédio. Em duplas ou sozinhos, foram ocupando marcações previamente escolhidas – entre os degraus, ao lado dos elevadores, no meio do café, em frente a uma obra – para uma avançada e arriscada desconstrução  da “Sinfonia nº 40”, de Mozart.

MULTI-ESTREIA-40

 

MULTI-ESTREIA-39

MULTI-ESTREIA-36

Plugado em cada um dos músicos, que usavam pontos eletrônicos, o maestro regeu a obra no térreo, enquanto o som ia sendo executado,  verticalmente, pelo ambiente. As inúmeras possibilidades de apreciação dessa experiência – testadas pelo público em romarias para cima e para baixo – culminavam com uma instalação no teatro, no último andar,  No local, sem a presença de qualquer músico, doze caixas espalhadas registravam os sons produzidos em cada marcação, gerando um surround de presenças e ausências, numa  curiosa provocação sensorial: o todo sendo ouvido, apesar das barreiras.

MULTI-ESTREIA-48

MULTI-ESTREIA-49

MULTI-ESTREIA-44

Depois, o tráfego sonoro foi o da volta dos músicos ao posicionamento original, no térreo. Novamente acústicos e desplugados, eles executaram a sempre assombrosa “Carmina burana”, muitos ali repetindo a célebre apresentação do mesmo tema nos “Concertos pela Democracia”, no OcupaMinc, no Palácio Capanema, no Centro do Rio, em 2016, quando a audiência colaborou com um arrepiante coro de “Fora Temer”.

MULTI-ESTREIA-50

No Multiplicidade, o coro se repetiu , para êxtase geral, com o maestro virado para a plateia, quase como uma estrela do rock, regendo, emocionado, os pulmões em fúria.  Foi o catártico barulho final de uma noite iniciada, sugestivamente, com quatro minutos de silêncio.

MULTI-ESTREIA-52

MULTI-ESTREIA-53

MULTI-ESTREIA-51