Diários do Xingu e uma longa reflexão no caminho de volta para casa
Fotos de Batman Zavareze, Gringo Cardia e Marcia Farias
Sol e lua
Ainda com a pele vermelha de urucum misturada com a poeira do barro fino que entra e não sai da gente, começo as 36 horas da longa jornada de volta para casa.
A ardência na pele me faz lembrar o tempo todo as indescritíveis visões do sol: exibicionista, redondo e quente, nascendo e se pondo no horizonte.
Quando o sol recuava, a lua no lado oposto, nascia, igualmente gigante e amarelada.
Uma beleza sem dimensão, em contraponto a uma natureza bruta e árida, tudo ao mesmo tempo.
Onças
Sempre cercado por onças, tucanos, maritacas, antas, tatus, veados, piranhas e jacarés que algumas vezes se exibiam para nós, com câmeras na mão desesperados por uma foto, outras vezes desapareciam quando piscávamos os olhos, ariscos que só.
Internet
Quando o gerador ligava por volta das 7 da noite por eternos e imaginários poucos minutos, era hora de corrermos para o posto médico, onde também coabitava a “lan House” da aldeia. Hora de ver a vida pelo WhatsApp, único meio de comunicação que funcionava para escutar notícias do mundo “civilizado”. Hora de se inteirar dos últimos escândalos do Brasil “oficial” e matar as saudades.
À noite, após o momento internet, um frio rasgante e incompreensível depois de um dia insuportavelmente quente que só uma fogueira ou as cobertas aqueciam o nosso sono.
O convite
Esta viagem com todos estes atributos exóticos só existiu porque teve um convite diferenciado de um rapaz especial, o Takumã Kuikuro, direcionado para o inglês mais carioca que conheço, Paul Heritage. Assim, iniciamos uma nova relação de trocas entre estes dois mundos, urbano e indígena, que foi muito além do consumo de artesanatos ou o simples turismo em uma aldeia.
Faz dois anos que me emocionei com a proposta que estava sendo aplicada num fundo inglês através da People’s Palace Projects em parceria com o Festival Multiplicidade e outras instituições cariocas. Mesmo envolvido e ciente desde o início, não dimensionava o impacto que me causaria.
O projeto foi crescendo e acabou por trazer numa primeira viagem ao Xingu em maio de 2017 uma equipe do canal BBC.
Os ingleses vieram com tecnologias avançadas da Factum Foundation e usaram ferramentas como drones e scanners 3D em imagens e sons.
Posteriormente, de 26 de agosto a 15 de setembro do mesmo ano, entraram além do Festival Multiplicidade, o Observatório de Favelas (Jailson da Silva), a Spetaculu (Gringo Cardia), Redes da Juventude (Marcus Faustini) e os artistas residentes ligados a cada uma destas instituições.
Takumã
Mas Takumã defendia uma ambição simbólica ainda maior; começar uma série de residências artísticas ampliadas onde os conhecimentos dos povos do Xingu, especialmente os Kuikuros, abrissem novas conexões através das artes para o mundo.
Sem imposições dos homens “brancos” para a aldeia, muito pelo contrário, a intenção é fazer um diálogo cuidadoso e construído coletivamente para enxergar as poéticas e pesquisas que sejam feitas em mão dupla.
O temor
Existe na aldeia dos Kuikuros o temor do uso excessivo de celular, internet, tvs, roupas de grife e motocicletas, itens presentes na vida deles igual está na nossa. O que pode parecer perigoso para alguns se transforma numa provocação pela reflexão nos indígenas mais sábios que lembram da época que introduziram de forma radical o anzol, o facão, a panela de alumínio no cotidiano. Isso gerou uma enorme mudança de hábitos.
Cada ferramenta nova, tecnologia ou impactos de nosso tempo quando implementadas sem o pensamento crítico contam com uma certa irreversibilidade em nossas vidas. Uma das formas de se manter sempre acesa a chama da identidade da aldeia dos Kuikuros é definitivamente a língua, como os líderes me disseram.
Assim, mesmo que o conceito de um povo intacto seja uma perspectiva romântica, manter a língua preservada é de uma força inestimável.
O mundo
Os Kuikuros tomaram o mundo. Da sua aldeia saiu um cineasta formado na Escola Darcy Ribeiro do Rio de Janeiro e premiado nos mais importantes festivais do planeta, o Takumã. Além disso, outras pessoas de seu povo ingressaram em renomadas universidades do Rio e de São Paulo: são professores, radialistas, líderes e políticos, que em paralelo não abandonam cargos ancestrais e hierárquicos na aldeia como caciques, pajés e guerreiros.
Eu
Eu já havia estado em aldeias no início dos anos 2000 como fotógrafo documentarista quando fui a algumas tribos da Amazônia (inclusive conheci os famosos Xavantes) mas estar com os Kuikuros e pescar no Rio Xingu em pleno 2017 foi a realização de um antigo sonho.
Viajei com a ansiedade e a vontade de investigar como se fosse a minha primeira vez numa aldeia.
Partilhei momentos especiais com os nove artistas residentes selecionados, com a equipe de produção da PPP e com o “cacique” inglês Paul Heritage. Tive também profundas conversas com o artista Marcus Faustini e o intelectual Jailson de Souza, meus companheiros de caminhadas e mergulhos diários.
Eu saio desta experiência maior, com a paixão e a generosidade de um povoado que te oferece tudo antes mesmo de saber o que eu tinha para oferecer em troca.
Valorizo ainda mais questões básicas de minha vida diante de tanta precariedade na infraestrutura e tamanha sabedoria dos Kuikuros para contornar as adversidades com criatividade.
Esta viagem, real e utópica, mexeu com a minha mente, minha alma, meu tempo, minhas prioridades, minha imaginação e minha saúde.
O Festival Multiplicidade
De 17 a 22 de outubro, 9 Kuikuros estarão no Festival Multiplicidade completando um ciclo, vivendo a residência artística agora ao revés, no Rio de Janeiro. A CasaRio, em Botafogo, será sua Oca na cidade maravilhosa.
Durante uma semana eles irão visitar o Pão de Açúcar, a praia de Copacabana, o Cristo Redentor, o Festival do Rio (este foi um pedido de todos), a favela da Maré e se apresentarão durante 3 dias no Oi Futuro com palestras, debates, oficinas e performances de suas culturas.
Fecharemos uma primeira etapa e a flecha lançada das residências artísticas Kuikuro da nação Xingu estarão abertas agora para o mundo, com uma Oca sede construída e trazendo práticas, metodologias, processos e criações.
Viva o Xingu!!!!
Festival Multiplicidade 2025, de 07 de outubro a 11 de novembro de 2017.
O Xingu em mim.