Sobre blogmultiplicidade

O Multiplicidade_Imagem_Som_inusitados é um festival de performances audiovisuais que acontece desde 2005 no Rio de Janeiro e que mostra ao público um amplo repertório de atrações no Oi Futuro Flamengo e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. O seu principal conceito é unir em um mesmo palco arte visual e sonoridade experimental.

O sangue latino ferveu na estreia do Festival Ultrasonidos 2023

Foi fuego. E também chuva, ventos e estrelas, lindas estrelas. La noche inaugural do Festival Ultrasonidos – desculpa o pai, o portunhol depois que entra, não sai mais – teve tudo isso e foi massa (intraduzível). Entre intervenções, debate, instalações e shows, promoveu-se, simbólica e também literalmente, a circulação entre o Brasil e suas (nações) hermanas sul-americanas, de cima a baixo, de baixo a cima, nos oito andares do prédio do Futuros – Arte e Tecnologia (ex-Oi Futuros, anota). Para quem não estava em forma, los ascensores, a tu derecha.

No térreo, onde tudo começou, a mediação suave de Helena Aragão extraiu de Luciane Dom, Marcelo Castello Branco e Danilo Cutrim preciosas reflexões sobre o que une e o que (ainda) separa a música hecho en Brazil de todo o universo ao seu redor. “Falta fazermos mais eventos valorizando essa integração. Porque nós somos latino americanos A gente sempre se engana, mas somos”, resumiu Castello Branco, presidente da UBC (União Brasileira de Compositores) e representante do Grammy Latino no Brasil.

Na galeria do segundo andar, sons, imagens e uma fita tape inusitada ligavam a primeira edição do festival, realizada em 2019 – alô Ataw Alpa, MC Carol, Las Hermanas, Aori, Yih Capsule, Alice Caymmi, Dado Villa-Lobos e The Holydrug Couple – à edição de 2023. ‘Vamos vencer”, dizia a fita colada no chão, repetindo o mantra do Festival Multiplicidade, que abraçou o Ultrasonidos como um pai abraça um filho. Batman Zavareze, eres um padre.

No quarto andar, a instalação “Quer ver, escuta” usava o paredão do Digitaldubs (se liga, vem aí a segunda edição do NFT.Rio) como elemento cenográfico e também, claro, como plataforma sonora para deixar fluir – no volume quatro, porque mais alto a casa ia cair – a playlist do Ultrasonidos 2023. Dava pra ouvir Bomba Estéreo, Flores Silvestres, Tribilin Sound, DJ Rata Piano, BALTHVS, Sofia Kourtesis, Paola Navarrete…

Na galeria do 5º andar, o percussionista Agustin Rios, argentino, radicado no Rio, dava uma aula com o projeto arte-educativo Tambores de América. Em três intervenções, ele mostrou como são e como soam os instrumentos que dão balanço aos diversos ritmos sul-americanos. A coisa foi tão boa que até o diretor artístico do Futuros, Felipe Assis, se juntou a Agustin para uma sessão de improviso. Traduz jam como?

E no teatrom ay, gente, foi ali que a mágica realmente aconteceu. As duplas Fémina (ARG) e Jonathan Ferr, e Kaleema (ARG) e Filipe Catto mostraram o que criaram durante a semana de residências artísticas, que aconteceu no Labsônica, do outro lado da rua. E deu match! As harmonias celestiais das irmãs Sofia e Clara Trucco se casaram, lindamente, com o piano espiritual de Ferr. E a voz repleta de emoção da Filipe Catto, uma força da natureza, também se enlaçou, divinamente, com as levadas folktrônicas de Kaleema. Qué roca la montaña qué!

Na descida, ainda rolavam os grooves dos DJs da Festa La Cumbia – Penna e Kajaman -, despejando todo o seu sangue latino na pista improvisada do térreo para os fortes de espírito e cintura.

E quando tudo se acabó, quando os sons e as luzes foram desligados, teve gente jurando – por Pachamama – que viu um Condor sobrevoando o prédio. Que noite, bicho, que noite.

Texto: Carlos Albuquerque

Fotos: Rogério von Krüger

Ultrasonidos 2023 reforça ponte entre o Brasil e suas hermanas

Clara Trucco, da dupla argentina Fémina, e Jonathan Ferr, no estúdio Labsonica

“Dá-me tu amor, solo tu amor”, pedia Herbert Vianna, em “Trac trac”, regravação dos Paralamas do Sucesso, lançada em 1991, para a música “Track track”, do argentino Fito Paéz, gravada quatro anos antes. O pedido foi atendido, em termos. Embora “Os grãos”, que trazia a música, tenha vendido no Brasil menos que os trabalhos anteriores do grupo – em 1991, Daniel Ek, fundador do Spotify, tinha oito anos e discos ainda eram comprados -, o álbum teve boa repercussão na Argentina e abriu as portas do mercado sul-americano para o trio. No ano seguinte, os PDS lançaram um disco com regravações dos seus sucessos em espanhol e passaram a lotar estádios no país de Maradona. Mil novecentos noventa y uno

Mas esse foi mais um caso isolado do que uma tendência. A curiosa relação musical entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos – assunto principal do Festival Ultrasonidos, que estreia hoje, no Futuros, num grande abraço do Festival Multiplicidade –  é marcada por inúmeros flertes ocasionais, como esse dos Paralamas com Fito Paéz, mas ainda parece faltar “mucho” para o romance ideal.

É certo que Caetano Veloso se declarou à América, que os Secos e Molhados saudaram o sangue latino, que João Donato jogou um molho de salsa na bossa nova, que Milton Nascimento encontrou Mercedes Sosa e que Paulinho Moska voou junto com Jorge Drexler. Na grande linha do tempo, porém, esses são pontos isolados, cheios de espaços vazios entre eles. E aí começam a surgir as interrogações. Que pasa?

Por que esse intercâmbio não é mais frequente? Por que na escalação dos festivais de música na América do Sul existem bandas da Argentina, Chile, Colômbia etc, e nenhuma banda do Brasil? Por que a escalação dos festivais de música no Brasil não incluem bandas da Argentina, Chile, Colômbia etc? Por que parecemos ouvir mais o que é produzido nos EUA e na Europa do que o que é feito ao nosso redor? É por causa do idioma? Hablamos apenas english? Que pasa?

Respostas na ponta da língua, ninguém tem. Mas existem novos sinais no ar e eles são animadores. O grupo Braza, que tem o DNA dos Paralamas, gravou com o grupo uruguaio Cuatro Pesos de Propina. Estrela emergente, a cantora Luciane Dom, que fez recentemente uma residência artística na Colombia, lançou um single com o grupo local Esteban Copete y su Kinteto Pacfico. E o BaianaSystem, um gigante que não para de crescer dentro da moderna MPB, vive reforçando seus laços com o continente, como demonstram os álbuns “Ato 3: América do Sol” e “Oxeaxeexu”.

E o Festival Ultrasonidos tenta fazer a sua parte, na busca por aproximações, carinhos e gentilezas entre o Brasil e sus hermanxs, sempre no mais sincero portunhol. Nessa edição, as residências  artísticas, marca do evento, são entre o grupo vocal Femina, da Argentina, e o pianista afrofuturista Jonathan Ferr, e entre a multi-instrumentista Kaleema, também argentina, e a cantora Filipe Catto. As duas duplas – que passaram a semana juntas em estúdio – vão apresentar o resultado das residências em shows, a partir das 19h, no teatro do Futuros – Arte e Tecnologia. A noite vai incluir também debate, instalações, intervenções do percussionista argentino Agustin Rios e DJs da Festa La Cumbia.

Quis o destino que esse abraço entre os dois países acontecesse na véspera do confronto entres eles, no dia seguinte, na final da Libertadores. Como vai ser no campo do futebol, só saberemos depois do apito final. Mas no campo da música, vai ser tudo lindo. La garantia?

Texto: Carlos Albuquerque

Foto de Batman Zavareze

É ontem!

É urgente.

É olhar para nossas ancestralidades

É dar luz a diversidade que pouco teve oportunidade

É reencontrar as multiplicidades através de linguagens plurais para amplificar as investigações embaralhadas e atravessadas que o festival sempre promoveu, ora usando as tecnologias do presente, do passado e do futuro, sempre com a mesma generosidade.

É memória

É escuta

É porta aberta para quem jamais entrou

É afeto: afetar e ser afetado.

É, como diz o dito Yorubá, “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”

Multiplicidade 2023

É ontem!

No Multiplicidade 2022, tudo deu certo dentro do impossível

Na abertura do Festival Multiplicidade 2022, a previsão era de fortes chuvas. Mas não choveu. No encerramento do Festival Multiplicidade 2022, a previsão era de fortes chuvas. Mas não choveu. Seguimos com mais notícias sobre o tempo.

Em 2018, nosso tema foi RESISTIR, EXISTIR em busca de SAÍDAS. Em 2019, foi BRASIS e nos comunicamos sempre de cabeça para baixo. Estávamos enxergando o improvável chegando perto de nós. Em 2020/21, apostamos no O QUE EU QUERO AINDA NÃO TEM NOME. Percebemos que estávamos fechando uma trilogia sobre o Brasil, mas vivemos o impensável, o absurdo, a utopia e distopia juntas para neste ano de 2022 encarar TUDO DENTRO DO IMPOSSÍVEL.

Nesse momento de recomeço, quando a pandemia começa a arrefecer, num esforço colossal para reconectar a poesia em nossas vidas, apostamos numa abertura artisticamente espiritual no Dia de Iemanjá, em que saudamos também a memória de Roberto Guimarães, Gerente de Cultura do Oi Futuro, que nos deixou em 2021.

A celebração à Rainha das Águas foi seguida por uma exposição generativa, “Bloom”, na qual um jardim digital reagia ao toque das pessoas. Justamente aquilo que foi tão caro ao longo da pandemia que parou o planeta foi o que motivou as pessoas a interagirem com os sons e as imagens do artista francês Maotik, uma “parede mágica”, como disse uma das muitas crianças que também se divertiram com a obra.

Seguimos por dois meses e fechamos a temporada com atrações remotas e presenciais na casa onde nascemos, o Oi Futuro. Ao longo desse período, mais de 3000 pessoas contemplaram a arte nos mais diversos formatos: performances, exposição, debates, filmes, residências artísticas etc.

Tivemos a parceria com o Amplify D.A.I – uma iniciativa do British Council, que joga luz no trabalho de artistas mulheres, trans, não binárias – que rendeu dois brilhantes trabalhos audiovisuais. “War” e “Amorphous materials” , frutos das residências das duplas Heather Lander (UK) e Erica Alves (BR), e Robin Buckley (UK). e VJ Grazzi (BR), respectivamente, foram exibidos num telão no Oi Futuro Flamengo, junto com as obras resultantes das parcerias do Amplify com os festivais Novas Frequências e Amazonia Mapping, e também com uma apresentação da DJ e produtora Obuxum, do Canadá. O dia contou também com um instigante debate sobre o papel feminino (e trans, não binário etc) na reconstrução de um mundo pós-pandêmico, com mediação de Maria Fortuna e falas potentes de Nayse Lopez, Marcele Oliveira e Glau Tavares. DJ e produtora, Glau completou a programação com um impecável set de balanços urbanos.

Desaceleramos um pouco com a exibição da obra audiovisual “Unite”, do músico dinamarquês Rumpistol, acompanhado do seu quarteto e do artista visual Marius Nielsen. Com sua sonoridade pastoral e seus hipnóticos visuais, “Unite” é um trabalho que reflete sobre a condição humana e foi concebido após o artista ter sofrido um esgotamento físico e emocional em 2018.

Já o filme “Nine Earths”, do britânico Mike Faulkner, exibido no encerramento do festival, levantou cruciais questões de sustentabilidade, ampliados por importantes depoimentos do climatologista Carlos Nobre e do líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, gravados especialmente para o Festival Multiplicidade 2022.

Como bem disse a artista Bianca Ramoneda em seu poema “(des)trava língua”, feito especialmente para o festival, um impossível entoado várias vezes em sequência se transforma em um possível. E é essa mensagem que reverbera, a partir de agora, dentro de nossa resistência poética: sim, é possível.

Voltando às notícias sobre o tempo, segundo uma acertada previsão do poeta Manoel de Barros, estampada em nossa parede, “ontem choveu no futuro”.

Texto: Batman Zavareze e Carlos Albuquerque

Fotos: Coletivo Clap

As formas fluidas que uniram Robin Buckley e VJ Grazzi

Robin Buckley (ou rkss) é umx artista sonora britânicx cujo trabalho desafia as categorizações, indo da música eletroacústica até os mais diversos cantos da dance music, sempre buscando explorar complexas questões sociopolíticas. Durante a parceria entre o Festival Multiplicidade e o projeto Amplify D.A.I, elx se juntou à VJ Grazzi, formada em Cinema e Mídias Digitais, com especialização em Video Mapping. Grazzi faz parte do grupo United VJs e do coletivo de artistas mulheres Multimanas. Já produziu obras audiovisuais para artistas como Luísa Sonza, Anitta, Pabllo Vittar e Baco Exu do Blues. Na conversa abaixo, elxs falam como foi esse encontro e explicam um pouco sobre “Amorphous materials”, a obra audiovisual inédita que criaram e será apresentada no Festival Multiplicidade.

Como foi trabalhar juntas? Como vocês se conectaram durante essa residência?

Robin – Foi fantástico! Grazzi é muito calorosa, criativa e aberta. Isso tornou a colaboração muito divertida e dinâmica, pois trocávamos ideias constantemente.

Grazzi – Robin tem a mente muito aberta, nos conectamos muito rápido nas nossas estéticas. O trabalho de criação foi muito fluído. Trocamos muitas referências e trabalhos antigos para entender como cada uma produzia até chegar em um conceito de liquidez. 

Sobre o trabalho que vocês criaram, qual o conceito por trás dele?

Robin – Estávamos cientes de que o contexto final seria online e presencial, e decidimos desde o início que queríamos tentar algo experimental e fluido. Isso nos levou a trabalhar com sons e visuais que brincavam com o tempo.

Grazzi – Pensamos em trabalhar de forma livre depois de buscar as referências que gostávamos. Escutei alguns sets que ela havia produzido e fui trabalhando em cima dos sons experimentais, usando materiais visuais reativos às ondas sonoras e segui nesse caminho.

Vocês pensam em voltar a trabalhar juntas?

Robin – Definitivamente! Estou muito feliz por termos sido colocadxs juntxs e espero que trabalhemos em mais projetos novamente no futuro.

Grazzi – Nossa troca foi muito aberta. No início das nossas conversas, cheguei com a ideia de produzirmos uma obra em formato fulldome para geodésicas. Essa ideia ainda continua viva para um dia ser concebida. Espero que consigamos concretizá-la futuramente. Agradeço o convite para participar da residência e poder me conectar com outras nuances culturais.

Fotos de divulgação e Pedro Lacerda (Grazzi)

Poesia e tensão na arte de Heather Lander e Érica Alves

Heather Lander é uma artista visual, que cria imersivas esculturas de luz. Nascida em Portland, EUA e radicada em Glasgow, Escócia, ela usa seu trabalho para discutir como a tecnologia afeta a nossa interpretação da realidade. Durante a parceria entre o Festival Multiplicidade e o projeto Amplify D.A.I, ela se juntou a Érica Alves, DJ e produtora, para uma residência artística on-line. Com três discos lançados, Érica é responsável pelo selo Baphyphyna e criadora da escola de produção musical WAVE. Na conversa abaixo, as duas falam como foi esse encontro e explicam um pouco sobre “War”, a obra audiovisual inédita que criaram e será apresentada no Festival Multiplicidade.

Como foi trabalhar juntas? Como vocês se conectaram durante essa residência?

Heather – Erica e eu rapidamente percebemos que temos métodos de trabalho semelhantes, pois criamos de acordo com o que sentimos no momento. A pesquisa e os interesses de Erica no inconsciente coletivo me causaram uma forte impressão. Eu costumava pensar muito nessa ideia quando pintava pinturas abstratas e estudava o expressionismo alemão e foi muito bom para mim começar a pensar e lembrar essas ideias em relação à minha prática. Essa (re)conexão que fiz através de Erica com os métodos de trabalho do inconsciente coletivo é algo que pretendo continuar focando agora. Achei muito fácil e um prazer trabalhar com a Erica. Apenas o ato de conhecer alguém e trabalhar juntos – combinado com seguir Erica no Instagram e poder ver todos os shows emocionantes que ela tem feito no Rio durante os festivais tem sido muito interessante para mim. Sinto que sei um pouco mais sobre o Rio e a incrível cena de arte e música da cidade.

Erica – Nosso encontro foi fluido e natural. Em poucos encontros online, encontramos nossos pontos em comum e descobrimos que temos abordagens parecidas para o processo criativo. Eu desenvolvo uma metodologia de criação chamada Imaginação Criativa, baseada na imaginação ativa de Carl Jung, e foi muito rico utilizá-la para nos orientarmos e chegarmos em imagens e significantes em comum. Assim, conseguimos nortear nossas criações em paralelo, ela nas imagens e eu no som, com base no que surgia nos encontros. Quando juntamos imagem e som, foi impressionante a quantidade de sincronicidades que encontramos. Foi uma conexão de dois inconscientes de lugares opostos no mundo. Muito rica a experiência.

Sobre o trabalho que vocês criaram, qual o conceito por trás dele?

Heather – Começamos com um conceito sobre as estações quando descobrimos que trabalhamos a partir de ideias de natureza e nossas conexões com ela e como todas as nossas vidas de alguma forma giram em torno das estações – apesar de elas serem bastante diferentes em algumas partes do mundo. Decidimos trabalhar as temporadas de trás para frente, em uma espécie de aceno de como tudo está confuso e como é difícil identificar momentos específicos durante a pandemia. A pandemia mudou a forma como percebemos o tempo. Não tivemos muito tempo para fazer isso funcionar. Fomos convidados a participar do projeto Amplify em meados de janeiro e nos conhecemos no início de fevereiro. Com o prazo de 28 de março, isso significava que precisávamos fazer o trabalho rapidamente. Acho que Erica e eu trabalhamos muito bem nesse sentido também. Imediatamente começamos a anotar algumas ideias para compartilhar. E o prazo apertado manteve as coisas em andamento. Durante a produção desta peça, nós no Reino Unido começamos simultaneamente a sair das restrições e entrar em nossa maior taxa de níveis de infecção até o momento. Foi mais um momento desafiador para todos. Além disso, uma guerra começou. E como todo mundo, assistimos a isso com horror e descrença. À medida que as notícias sobre a invasão ficaram mais duras e angustiantes, isso começou a se infiltrar em nossas cabeças e, consequentemente, em nosso trabalho. Em algum momento durante nosso projeto, percebemos que nossos pensamentos sobre a guerra estavam se tornando parte de nossa peça, querendo ou não. Da minha parte, tentei incorporar essas emoções misturadas dos últimos dois anos.

Erica – A princípio estávamos em um processo de levantar as imagens dos nossos inconscientes, e de início já estávamos em uma temática mais “dark”, com cores escuras, insetos, aracnídeos, corvos, nuvens. Precisávamos criar 30 minutos de material e resolvemos utilizar as quatro estações como uma forma de nos orientar para criar mais climas e uma linha narrativa para guiar nossas criações. No entanto, no meio do processo, estoura a guerra na Ucrânia e isso me afetou, o tema atravessou meu inconsciente, além de estar também me despedindo do verão brasileiro. Quando comecei as gravações, a agressividade e violência veio com força total, e o som começa bastante acelerado já, como se fosse um bombardeio repentino. Após esse susto, parece que mergulhamos em devaneios, como se fosse mesmo o inconsciente de uma pessoa entre a vida e a morte. Depois, entra um tema de verão, de sol, de praia, do pé na areia quente, me remetendo ao verão carioca, tão distante daquele cenário, ao mesmo tempo que vivemos também uma guerra diária, um genocídio contra a população negra e periférica. O tom de deboche permeia, ao mesmo tempo que os sintetizadores ficam mais desconexos. O terceiro e último movimento já inicia uma espécie de tomada de consciência. “It’s war”, como é difícil se juntar nessa conjuntura de guerra.

Vocês pensam em voltar a trabalhar juntas?

Heather – Não discutimos isso, mas eu certamente adoraria trabalhar com Erica novamente. Amo sua energia e sua música, e foi uma experiência muito boa para mim. Adoraria ir ao Rio um dia, conhecer Erica, fazer mais alguns trabalhos juntos e ver o festival (Multiplicidade).

Érica – Eu adoraria fazer mais trabalhos com a Heather!

Fotos de divulgação

Rumpistol depois do dilúvio

Há várias traduções para “flood”: “enchente”, “inundação”, “cheia” etc. No caso de  “After the flood”, título do álbum do músico, produtor e DJ dinamarquês Rumpistol (Jens Christiansen), a interpretação mais adequada pode ser “Depois do dilúvio”. Afinal, o disco foi lançado no auge da pandemia, após uma tempestade pessoal vivida pelo artista, conhecido por sua arrojadas criações eletrônicas, que sofreu uma crise de estresse que o fez parar com todas as atividades. Recolhido em sua casa em Copenhague, ele encontrou no piano um canal para se reerguer e voltar a compor. O resultado foram as doze delicadas e minimalistas faixas de “After the flood”, enriquecidas por cello, violinos e um raro órgão de cristal, cortesia do conjunto que acompanhou Rumpistol , atração do Festival Multiplicidade de 2015, nas gravações. Esse mesmo Ensemble, acrescido do baixista Jonathan Bremer e do baterista Emil de Waal, segue com ele no seu mais recente álbum, “Isola”, lançado agora quando a pandemia começa a arrefecer, e também no ensaio audiovisual “Unite”, destaque do Multiplicidade 2022.

– Aprendi a respirar através do piano – conta Rumpistol, durante uma conversa franca sobre os dois álbuns, saúde mental e pressões em torno do processo criativo.

Que lembranças você tem da participação no Festival Multiplicidade de 2015, no Planetário e no Parque Lage?

Aquela foi a minha primeira visita à América do Sul e só tenho boas lembranças. Vim só para o Multiplicidade e fiquei no Rio por uma semana. Adorei o festival. Foi incrível estar no Parque Lage, cercado de montanhas. Foi ótimo também ter tocado no Planetário.

Você voltou ao país depois, para uma participação na abertura dos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Fez também uma apresentação ao lado do BaianaSystem, durante o Festival Dansk!BR, em 2018. Foi após esse último show que você começou a apresentar sintomas de estresse extremo, que levaram a um recolhimento pessoal e artístico. Como você lidou com essa experiência? O que aprendeu com ela? E como reencontrou o equilíbrio?

Acho que o estresse era como um cronômetro escondido dentro de mim. Há anos, vinha trabalhando demais, emendando turnês, viajando a toda hora. E tudo isso com três filhos, sendo um deles pequeno. Então, seu sono fica quebrado. Tinha perda de memória, esquecimento. Estava em pleno modo multitarefa. Quando tem muita coisa acontecendo, você perde foco. E aprendi que sou melhor focado em uma coisa de cada vez. Planejar é importante. Eu estava sendo pouco realista com meu tempo. E com filhos, você aprende que não pode usar o tempo do mesmo jeito que antes, não pode trabalhar 12 horas seguidas, por exemplo. Então, foi uma grande experiencia trabalhar com o BaianaSystem, foi demais, era uma oportunidade que eu não perderia, mas foi a última gota a transbordar. Quando voltei para casa, senti que estava muito cansado. Demorei a perceber que não era apenas jet leg. Felizmente, isso aconteceu perto do Natal, quando tudo desacelera naturalmente, principalmente na Dinamarca, aqui tudo fecha em janeiro. Pensei, já que vou ter um tempo desligado, não vai ser tão mau assim. Cancelei algumas apresentações e fiquei totalmente off; Mas o estresse é seu pior inimigo porque o cérebro, sobrecarregado, ainda segue trabalhando. Tive reações físicas, não conseguia olhar meu computador. Sentia dores de cabeça, náuseas. Realmente, se não tivesse parado, seria pior.

Pelos seus relatos, o estresse também influenciou a forma como você gravou “After the flood”. Como o piano ajudou você nessa transição? Como foi canalizar toda sua criatividade através desse instrumento?

Foi uma decisão relacionada com o fato de eu ter que ficar mais tempo em casa. Meu estúdio fica em outro lugar. E ele é mais eletrônico, cheio de sintetizadores, baterias eletrônicas. É um lugar que adoro. Mas foi bom ficar distante e reduzir a complexidade das coisas ao meu redor, que trazem muitas possibilidades. Com o piano, que tinha em casa, não precisava ligar nada. Era tudo muito físico e menos cerebral.  Foi como uma terapia usar o piano. Esqueci de prazos. Apenas sentava e criava melodias. Era tudo mais meditativo, eu quase respirava através do instrumento. Foi um desafio usar essa terapia no piano. Assim, lentamente fui criando as músicas. Quando me senti melhor, fiz arranjos de cordas e comecei a gravar o disco.

No disco, você usou sons das ruas de Copenhague, gravados durante suas caminhadas pela cidade. Como foi esse processo e de que forma essas gravações se incorporaram às músicas do disco?

Sempre gostei de usar gravações de campo. E andar foi uma das coisas que melhoraram meu espírito. Passei a caminhar muito, indo para áreas da cidade que não ia há anos. Ficava impressionado com as mudanças, com a gentrificação. Ouvia muitos barulhos de obras, tanto que pensei chamar o disco de “Under construction”.

A faixa que abre o disco, “There there”, ganhou um belo e delicado vídeo, dirigido por Claus Kristensen. Como aquelas imagens representam o espírito do álbum e o seu próprio? Podemos imaginar que é você andando, de skate, inclusive, no vídeo?

Na verdade, é a filha do diretor no vídeo. Foi ideia dele usar ela como personagem. foi, Achamos que era um bom ponto não mostrar o rosto, podia ser homem ou mulher. São imagens bem poderosas.

Como você, que passou previamente por uma experiência de recolhimento pessoal,  lidou com a pandemia, que fez o mundo inteiro se recolher?

Definitivamente, a pandemia não é uma caminhada no parque. No começo, foi um grande choque, como para todo mundo, já que eu tinha planejado lançar “After the flood” e voltar a fazer shows. Com os cancelamentos e tudo mais, quase fui puxado pelo estresse de novo. Felizmente, minha mulher me alertou disso e me deu apoio, me ajudando a refazer os planos e priorizar determinadas coisas. Agora, vivo um dia de cada vez.

E o que liga “Isola” a “After the flood”, em termos musicais e emocionais?.
Os dois discos foram gravados durante um estado emocional frágil. Se em “After the flood” teve a ver com meu estresse, “Isola” lida com a pandemia, com o isolamento e toda a frustração e dor que ela nos causou. Os dois discos foram escritos inicialmente para o piano e depois, diferentemente de meus trabalhos anteriores, tiveram o acréscimo de músicos tocando ao vivo no estúdio, em particular  Maria Jagd no violino, Line Felding no cello e Kristian Hoffmann na lap guitar, que deram uma grande contribuição ao som criado nesses discos e também na criação de “Unite”. Depois, o grupo ganhou o reforço de Jonathan Bremer com seu adorável baixo acústico e Emil de Waal na bateria e percussão. Os dois trouxeram um toque de jazz minimalista nórdico que eu gosto muito.
Resumindo: você teve um estresse. Então, você se recuperou e lançou “After the flood”. Aí veio a pandemia. E agora, quando a pandemia começa a arrefecer e você tem um álbum novo, surge uma guerra. Como você se sente em meio a esse vai e vem de emoções?
Tem sido muito surreal morar na Dinamarca nesse momento. Por conta dos nossos invernos duros e escuros, sempre percebemos o outono como uma estação positiva, quase eufórica, mas este ano, por causa da guerra na Ucrânia, tudo mudou dramaticamente. Temos refugiados ucranianos chegando a toda hora, em grandes números. Os preços de tudo têm subido. E o pior de tudo é que há um país a apenas 20 horas de carro de distância sendo atacado impiedosamente. Sinceramente, é muito complicado assistir ao noticiário porque é tudo tão devastador. E me preocupo com as pessoas que conheço na Rússia que estão sendo condenadas a até 15 anos de prisão porque usaram a palavra “guerra”. Mesmo assim, sigo acreditando que o amor e a compaixão vão terminar sendo mais fortes do que os demagogos e tiranos do mundo.
Texto: Carlos Albuquerque
Foto: Mads Fisker

O risco de cercear a cultura de um país em reação a seus governantes

Por Marta Porto*

Uma arte cercear a outra? Não pode. O rap é a música da liberdade”.

Mano Brown, Podpah, março 2022

Não sei se Mano Brown concorda ou não com minha posição contrária à onda de cancelamentos de artistas e intelectuais russos desde que Vladimir Putin resolveu atacar a Ucrânia e empreender sua guerra insana. Mas, ao responder no Podpah “uma arte cercear a outra? Não pode”, Brown coloca a pergunta que me faço todos os dias desde que os bloqueios começaram: podem as organizações culturais cercearem outras culturas, mesmo em reação às ações extremas de seus governantes?

Já expus alguns dos motivos que me levam a responder que não. Além de não combinar com as ideias de democracia liberal que grande parte dessas instituições defende, o cancelamento leva à percepção de que os setores culturais e seus dirigentes estão rapidamente dispostos a abrir mão de estabelecer pontes usando os instrumentos já conhecidos pela comunidade cultural, os intercâmbios e a cooperação do conhecimento que as artes oferecem. Ou afirmando a memória também como espaço de resistência. Em  “O Livro do Riso e do Esquecimento”, Milan Kundera soube traduzir isso muito bem: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.

As artes são um dos raros lugares em que é possível promover encontros. Criar condições de convivência pacífica e fazer pessoas e comunidades em conflito encontrarem maneiras de cantarem, dançarem, chorarem e se emocionarem umas com as outras. É também o lugar onde se reconhecem e se dá voz às resistências quase heróicas de criadores que fazem oposição a regimes autoritários. É uma janela aberta para a inteligência e um abrigo para as diferenças, transcendendo fronteiras reais ou simbólicas em convites para uma zona de encontros. Erguer muros em um mundo que já pegou gosto por construí-los é em si uma atitude anti cultural.

Assumir este lugar implica riscos, como o de dar visibilidade àqueles que se colocam ao lado sujo da história, violam princípios de dignidade humana e pregam a violência. Isso tudo é verdade, e as organizações culturais devem estar alertas para não oferecerem de forma acrítica um palco para ideias como essas.

Mas, diante da emergência de assegurar espaços plurais em tempos em que os vínculos com identidades estreitas são celebrados, empreender uma jornada de cancelamentos não parece ser o melhor caminho para quem atua por e pela cultura. Sobretudo em tempos de guerra e ódio.

Ao excluir de sua programação o filme do jovem cineasta russo Kirill Sokolov, o Festival de Glasgow perde a oportunidade de ter um opositor ao regime e à guerra de Putin. Qual a vantagem cultural desta decisão?

Lembro de uma fala de Rebecca Lamoin, Diretora de Public Engagement and Learning at Queensland Performing Arts Centre, dita em um contexto diferente mas que ajuda a jogar luzes nesta discussão:

“Não há maneira fácil de lidar com a vida na sociedade. Viver em sociedade, encontrar formas de compartilhar um espaço comum e agir nele envolve tensão e história. Arte e ciência também refletem essa tensão. É por isso que também deve ter um lugar nas organizações culturais. No entanto, a questão de quando e como tomar uma posição é muito pertinente. O perigo de se envolver em políticas partidárias e agendas pessoais é real. Acreditamos, no entanto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a missão de muitas organizações culturais de promover a compreensão, o diálogo, a tolerância e o respeito, bem como o necessário pensamento crítico, podem fornecer a orientação necessária na tomada de decisões. As organizações culturais devem permanecer relevantes na vida das pessoas. Podem permanecer em silêncio diante das injustiças sociais, da intolerância, do ódio e da discriminação?”

Não podem e não devem. Para isso existem os serviços de comunicação, os educativos, as curadorias, para organizar formas de tomar posições claras sem que isso implique censura, bloqueios e exclusão por noções de identidades estreitas.

Em uma guerra, mesmo quando está claro o lado do agressor e do agredido, como nesta guerra de Putin contra a Ucrânia, há perdedores em todos os lados. Há medo, incompreensão, dor e perdas. E há sobretudo a prevalência de um ethos pouco disposto a promover zonas humanitárias de aproximação, afeto e trocas.

A cooperação cultural se funda na crença de que essas zonas são possíveis e desejáveis. Não propõe que as artes, a poesia, a livre criação humana e as instituições que as tornam públicas vivam em um mundo paroquial e pequeno, longe do colapso que afeta a vida real das pessoas, mas faz um convite para não fazer do colapso um destino.

Mimetizar as sanções e os bloqueios econômicos nas instituições que cuidam do simbólico sugere que falhamos em proteger o valor da pluralidade, em detrimento da opressão.

*Texto publicado originalmente no site da revista Exame

Foto: Getty Images/Sean Gallup

O toque mágico de ‘Bloom’

O que todos esperam para o dia depois de amanhã, quando finalmente sairmos do inverno da Covid? Várias coisas, entre elas, sem dúvida, a volta do toque, do contato, con-tato, representando o desabrochar coletivo após tanto tempo de recolhimento/encolhimento social. De forma poética e simbólica, foi isso o que aconteceu na estreia do Festival Multiplicidade 2022, com a abertura da instalação “Bloom”, do artista francês Maotik, no Oi Futuro Flamengo.

“Espero que as pessoas gostem. É sempre emocionante estrear ´Bloom´ em um novo lugar, em uma nova versão”, contava Maotik, um pouco antes da abertura do local ao público. A instalação, criada por ele e que já circulou pela França, Egito e Itália (no metrô de Roma), sempre atualizada a cada edição, funciona em um video wall que reage aos movimentos e gestos do público através de sensores de laser, gerando um contínuo e deslumbrante “florescer” digital. “Fico sempre curioso com a reação das pessoas”.

Como era de se esperar, a reação do público foi tão variada quanto às possibilidades abertas por “Bloom”. Teve gente que dançou, teve gente que girou os braços, teve gente que chutou, teve gente que ficou de cabeça para baixo, teve gente que desenhou retas e curvas, teve gente que abriu portais imaginários e teve gente que pareceu querer entrar dentro da parede e passar para uma outra dimensão. “Descansei do mundo sendo transportada para um outro universo, onde só a poesia dá conta”, resumiu Bianca Ramoneda, cujo poema “(des)trava-língua” dividia a parede da entrada com uma apropriada frase de Manoel de Barros: “Ontem choveu no futuro”

Esse projeto é patrocinado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa e Oi, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Realizado pelo Oi Futuro em parceria com o Serviço de Cooperação e Ação Cultural do Consulado da França no Rio de Janeiro.

Fotos: Coletivo Clap e Batman Zavareze

Multiplicidade 2022 abre os caminhos em uma noite mágica

A previsão era de uma noite de chuva e de fortes emoções. Mas só o segundo prognóstico vingou completamente. A pré-estreia (ou estreia espiritual) do Festival Multiplicidade 2022 no Centro Cultural Oi Futuro Flamengo – no Dia de Iemanjá, 2-2-22 – foi uma torrente de sentimentos, que começou com a inauguração da obra “Vantu”, de Odan, seguiu com “Aruanda”, uma celebração da cultura afro-brasileira, conduzida pela Companhia de Aruanda, com uma lembrança especial ao saudoso Roberto Guimarães, ex-Gerente de Cultura do OF, e culminou com um cortejo até a Praia do Flamengo, em homenagem à Rainha das Águas, com flores jogadas ao mar, roda de ciranda, beijos, abraços e lágrimas. Dentro do impossível, lema do festival neste ano, foi tudo lindo demais.

Com o Oi Futuro Flamengo ainda vazio no meio da tarde, começaram a dizer presente os integrantes da Companhia de Aruanda e também da Casa de Candomblé Onixêgun.. Aqueles que optaram pelas escadas, em vez dos elevadores, para chegar aos camarins, no oitavo andar do prédio, passaram pelo quarto andar, onde estava “Vantu” e também local onde ocorreria “Aruanda”. A obra – um gigantesco vaso, com sonorização própria – é uma homenagem aos escravos que chegaram ao Cais do Valongo, na zona portuária do Rio de Janeiro, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, após longa e sofrida travessia a partir do continente africano.

Aos poucos, começaram os preparativos para a cerimônia. Atabaques foram montados e flores e plantas foram jogados ao chão, delicadamente destacados pela iluminação do local. Às 18h em ponto, artistas e um grupo seleto de convidados – devido à pandemia – se juntaram para o começo de “Aruanda”. De branco, todos foram envolvidos pela beleza da cerimônia, que teve seu auge quando foi ouvida a voz e o batuque de Luiz Ângelo da Silva, o Ogan Bangbala, de 102 anos, o mais antigo Ogan do Brasil. No evento, foi lembrada também a memória do congolês Moïse Kabagambe, brutalmente assassinado alguns dias antes, na Barra da Tijuca. O sentimento geral, porém, foi de fé em dias melhores.

Após a cerimônia, o grupo desceu para o pátio do Oi Futuro, onde se juntou a um time maior de convidados, que já esperava para a saída rumo à praia. Com o céu carrancudo, o cortejo seguiu – poderia dizer, flutuou – pela Rua Dois de Dezembro, com seus cânticos e passos tratados com um bem vindo respeito pelos carros que passavam pela via. Prosseguimos no sinal verde. Na passagem pela passarela do Aterro, o cortejo já contava com cerca de 200 pessoas .

Na areia, a cerimônia teve inicialmente um momento dedicado ao sagrado, com os tradicionais cantos em saudação à Iemanjá. Depois, foi anunciado o momento “profano”, de festa, de celebração. A roda foi aberta e quem estava presente entrou e dançou- incluindo também ambulantes, jogadoras de futevôlei, gente que estava correndo etc. Mãos foram dadas – há quanto tempo! – e a ciranda girou, para cima e para baixo, para um lado e para o outro. Foi bonito, foi amoroso, foi caloroso, foi especial. Após algum tempo – como se mede o tempo durante um sonho? -, “Aruanda” foi encerrada e o grupo começou a se dispersar, aos gritos de Odoyá. Nos rostos, a expressão parecia ser de graça, de alívio e de (um pouco de) paz. No céu, um ronco indicava que um avião estava atravessando as nuvens rumo ao futuro.

Mais tarde, só bem mais tarde choveu.

Texto: Carlos Albuquerque

Fotos: Coletivo Clap