Por Carlos Albuquerque
A calorenta noite de sexta na Gamboa parecia seguir o seu ritmo normal. Pelas ruas em torno da Pedra do Sal, o insinuante vai vem dos corpos era embalado por uma roda de samba e pelas caixas de som dos ambulantes. Na barraca Salgados da Pretinha, o apetite de locais e visitantes era combatido através do cardápio bilíngüe. Tinha bolinhos (“cookies”) de aipim com carne seca (“casserole with dried meat”) e de aipim com carne moída (“casserole with ground beef”), e também salgados (“salty”) como coxinha de frango com catupiry (“coxinha of the chicken with catupiry”), enroladinho de salsicha (“sausage curl”) e kibe (“kibe”). Ali pertinho, dentro do Éden, o clima era outro, era de montanha. E as pessoas estavam com a cabeça nas nuvens.
Filme-instalação do artista espanhol (de Barcelona) Carlos Casas, “Avalanche” – apresentado na ocupação do Multiplicidade – era o responsável por essa troca de ares. A sinopse era compacta: uma obra em progresso sobre o vilarejo de Hichigh, localizado nas Montanhas Pamir (uma das mais altas do mundo), no Tajiquistão, prestes a se transformar em uma cidade fantasma. Mas, na prática, “Avalanche” se estende para muito além das palavras. A documentação de Casas – que desde 2009 viaja regularmente ao local – é invisível. Em vez do tradicional formato jornalístico – de conversas e contextualização –, seu olhar não traz perguntas, nem respostas. Ele apenas está lá – presente, imóvel, imperceptível, em longas e reflexivas tomadas, seja da rotina das poucas pessoas presentes no local ou da imponente natureza que o cerca.
De formato flexível, o projeto foi apresentado no festival como uma instalação, sem e com intervenções sonoras. Na primeira parte, fixou-se em práticas rotineiras no vilarejo – o aldeão esmagando grãos com uma pedra, a mulher andando com baldes, os dois homens mexendo o carvão de um forno etc. Jogadas no enorme colchão em frente ao telão, as pessoas se desligavam, por alguns minutos, da hiperatividade diária e adentravam o plano meditativo aberto por Casas, num breve momento de inspiração e expiração profunda, sem a ânsia de cliques e likes. O tempo em suspensão. O barulho-ruído do cotidiano. John Cage, novamente, presente entre nós.
Na segunda parte, “Avalanche” se expandiu, estimulado pelas intervenções de Neil Leonard e Nikhil Uday Singh, e do Chelpa Ferro. Dessa vez, o protagonista foi o meio ambiente – a neve, as nuvens, os vales e as montanhas de Hichigh –, contrastando com o sax espacial de Leonard e com a cortina sônica do Chelpa. Equilibrado entre a poesia e a provocação, o barulho ali foi visual. Ou, como diria a Salgados da Pretinha, “the stuff was visual”.