A repressão e a arte nos extremos elásticos do barulho

Obra de Gabriela Mureb

Obra de Gabriela Mureb

Texto: Carlos Albuquerque

Iara tem cinco meses de idade.  Diariamente, por volta de 5h30m, ela acorda e fica “falando” sozinha no berço. Ainda incapaz de formular palavras, treina o volume e o alcance da sua pequena voz em uma série de estranhos e divertidos ruídos, que podem ser apreciados do quarto ao lado.  Sua performance dura cerca de meia hora, até que se cansa da brincadeira e começa a elevar o tom. Na fase final dos seus concertos matinais, grita a plenos pulmões(zinhos), buscando despertar os pais . Quando um dos dois se aproxima do berço, ela sorri um sorriso sem dentes enquanto é erguida, vitoriosa, rumo à primeira mamada do dia. Iara já sabe – ou só sabe – como é importante fazer barulho. Em breve, vai descobrir como conviver com ele, como se proteger dele e, talvez, como perceber os inúmeros sinais dentro dele.

Como por exemplo…

Durante os inflamados protestos que sacudiram a cidade de Ferguson, nos EUA, em 2014 por causa da morte de um adolescente negro, desarmado, por um militar branco, a polícia apresentou suas armas. Além do usual arsenal de “contenção” – escudos transparentes, cassetetes, capacetes reluzentes, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha etc -, as autoridades usaram contra os manifestantes um canhão sonoro, também conhecido como LRAD (de Long Range Acoustic Device). No formato de uma caixa de som, o aparelho é capaz de emitir ruídos de até 160 decibéis – o limite humano é de 120 decibéis -, num alcance de oito quilômetros de distância, causando desorientações, náuseas, vômitos e perda parcial da audição em quem estiver no seu caminho.

Esse barulho de repressão em massa já foi tema de diversas publicações, entre elas o livro “Sonic warfare: sound, affec t and the ecology of fear”, escrito pelo filósofo, músico, produtor e DJ escocês Steve Goodman. Editado pelo renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology), o livro mostra como armas sônicas têm sido usadas ao longo do tempo, seja como ferramenta para afastar pássaros de pistas de aeroportos ou como defesa contra  ataques de piratas a navios comerciais. Goodman menciona também a tortura de prisioneiros com heavy metal em alto volume, feita pelo exército norte-americano durante a invasão do Iraque nos anos 2000. Mas a utilização do LRAD nas ruas, com a determinação de manter tudo em seu lugar, tem causado controvérsia – a tecnologia desse aparelho ainda é cercada de segredos – e gerado uma intensa discussão sobre sua legalidade.

Ironicamente, Goodman, cujo nome artístico é Kode 9, também usa  o barulho, em particular o poder das freqüências graves, não para afastar as pessoas e sim para aproximá-las na pista de dança e fora dela. Além de DJ, Kode 9 é dono da aclamada gravadora independente Hyperdub, casa de artistas avançados como Lee Gamble, Ikonika, Burial, Laurel Halo e Zomby. Um dos nomes mais interessantes do cast da Hyperdub é a produtora e artista visual Fatima Al Qadiri. Nascida no Senegal, criada no Kuwait e radicada nos EUA, ela lançou, ano passado, o provocativo álbum “Brute”, no qual gélidos sintetizadores e profundas linhas de baixo convivem com samples de sirenes, helicópteros, gritos de multidão, diálogos entre policiais (uma das faixas tem o nome de “10-34”, código militar para tumulto) e, novamente ele, o canhão LRAD (reproduzido na impactante faixa de abertura, “Endzone”).  Inspirado pelos protestos de Ferguson, Baltimore e Nova York, “Brute” consegue um feito inusitado: fazer música de protesto de forma totalmente instrumental.

Servindo tanto à repressão como à arte, o LRAD simboliza bem os extremos elásticos do barulho, que pode nos ensurdecer e paralisar, assim como pode nos inspirar e movimentar. Impreciso e ambíguo, intrusivo e indesejado, purificador e libertador, o barulho não tem uma face única. Há o barulho de guitarras, o barulho de bombas, o barulho da celebração, o barulho da repressão, o barulho das panelas e o barulho quase imperceptível dos cliques. A lista é estrondosamente longa. Em 2017, ela parece se estender, perigosamente, por zonas obscuras, de muito ruído e pouca escuta, de gritos por censura às artes e berros, coléricos, contra tudo o que é diferente do “normal”.

instalação de Lenora de Barros

EXPERIENZA LIVECINEMA #3, de Lenora de Barros e Raul Morão

Mais uma vez, a música serve de contraponto a tudo isso. Modulando lições ancestrais que vêm de Luigi Russolo, Edgar Varèse, John Cage, Stockhausen  Jimi Hendrix e Sonic Youth, entre outros, o barulho segue desmontando o quadrado do pop. Lá está ele, cimentando as novas obras de artistas como Mogwai, Bemônio, Lê Almeida, Narcosatanicos, Antwood, Ben Frost,  etc. Seu manto da invisibilidade, porém, parece ter os dias contados, graças aos avanços da tecnologia. Com a ajuda de ferramentas de mapping e de realidade aumentada, o artista Zach Liberman construiu um aplicativo com o qual consegue “visualizar” os barulhos que estão no ar.  Com o celular nas mãos, ele mira nos ruídos que produz aleatoriamente – Shh! Eee! Ohm! Click! Poin! – e enxerga todos eles  transformados em formas diversas.

O projeto de Liberman ainda é experimental, mas abre as portas da imaginação de um novo mundo.  Como seria se víssemos a distorção saindo da guitarra de Hendrix em Monterrey, 1967? Que rastros o LARD deixaria no ar antes de atingir nossos tímpanos? Que formas assustadoras teriam os grunhidos de milícias fascistas contra mostras de arte provocadoras? Que desenho teria a batucada de uma escola de samba? Qual sinal de fumaça sairia das caixas de um sound system jamaicano?

E, por fim, será que eu poderia soprar as bolhas de barulho saídas da boquinha banguela de Iara todas as manhãs?