O sangue latino ferveu na estreia do Festival Ultrasonidos 2023

Foi fuego. E também chuva, ventos e estrelas, lindas estrelas. La noche inaugural do Festival Ultrasonidos – desculpa o pai, o portunhol depois que entra, não sai mais – teve tudo isso e foi massa (intraduzível). Entre intervenções, debate, instalações e shows, promoveu-se, simbólica e também literalmente, a circulação entre o Brasil e suas (nações) hermanas sul-americanas, de cima a baixo, de baixo a cima, nos oito andares do prédio do Futuros – Arte e Tecnologia (ex-Oi Futuros, anota). Para quem não estava em forma, los ascensores, a tu derecha.

No térreo, onde tudo começou, a mediação suave de Helena Aragão extraiu de Luciane Dom, Marcelo Castello Branco e Danilo Cutrim preciosas reflexões sobre o que une e o que (ainda) separa a música hecho en Brazil de todo o universo ao seu redor. “Falta fazermos mais eventos valorizando essa integração. Porque nós somos latino americanos A gente sempre se engana, mas somos”, resumiu Castello Branco, presidente da UBC (União Brasileira de Compositores) e representante do Grammy Latino no Brasil.

Na galeria do segundo andar, sons, imagens e uma fita tape inusitada ligavam a primeira edição do festival, realizada em 2019 – alô Ataw Alpa, MC Carol, Las Hermanas, Aori, Yih Capsule, Alice Caymmi, Dado Villa-Lobos e The Holydrug Couple – à edição de 2023. ‘Vamos vencer”, dizia a fita colada no chão, repetindo o mantra do Festival Multiplicidade, que abraçou o Ultrasonidos como um pai abraça um filho. Batman Zavareze, eres um padre.

No quarto andar, a instalação “Quer ver, escuta” usava o paredão do Digitaldubs (se liga, vem aí a segunda edição do NFT.Rio) como elemento cenográfico e também, claro, como plataforma sonora para deixar fluir – no volume quatro, porque mais alto a casa ia cair – a playlist do Ultrasonidos 2023. Dava pra ouvir Bomba Estéreo, Flores Silvestres, Tribilin Sound, DJ Rata Piano, BALTHVS, Sofia Kourtesis, Paola Navarrete…

Na galeria do 5º andar, o percussionista Agustin Rios, argentino, radicado no Rio, dava uma aula com o projeto arte-educativo Tambores de América. Em três intervenções, ele mostrou como são e como soam os instrumentos que dão balanço aos diversos ritmos sul-americanos. A coisa foi tão boa que até o diretor artístico do Futuros, Felipe Assis, se juntou a Agustin para uma sessão de improviso. Traduz jam como?

E no teatrom ay, gente, foi ali que a mágica realmente aconteceu. As duplas Fémina (ARG) e Jonathan Ferr, e Kaleema (ARG) e Filipe Catto mostraram o que criaram durante a semana de residências artísticas, que aconteceu no Labsônica, do outro lado da rua. E deu match! As harmonias celestiais das irmãs Sofia e Clara Trucco se casaram, lindamente, com o piano espiritual de Ferr. E a voz repleta de emoção da Filipe Catto, uma força da natureza, também se enlaçou, divinamente, com as levadas folktrônicas de Kaleema. Qué roca la montaña qué!

Na descida, ainda rolavam os grooves dos DJs da Festa La Cumbia – Penna e Kajaman -, despejando todo o seu sangue latino na pista improvisada do térreo para os fortes de espírito e cintura.

E quando tudo se acabó, quando os sons e as luzes foram desligados, teve gente jurando – por Pachamama – que viu um Condor sobrevoando o prédio. Que noite, bicho, que noite.

Texto: Carlos Albuquerque

Fotos: Rogério von Krüger

Ultrasonidos 2023 reforça ponte entre o Brasil e suas hermanas

Clara Trucco, da dupla argentina Fémina, e Jonathan Ferr, no estúdio Labsonica

“Dá-me tu amor, solo tu amor”, pedia Herbert Vianna, em “Trac trac”, regravação dos Paralamas do Sucesso, lançada em 1991, para a música “Track track”, do argentino Fito Paéz, gravada quatro anos antes. O pedido foi atendido, em termos. Embora “Os grãos”, que trazia a música, tenha vendido no Brasil menos que os trabalhos anteriores do grupo – em 1991, Daniel Ek, fundador do Spotify, tinha oito anos e discos ainda eram comprados -, o álbum teve boa repercussão na Argentina e abriu as portas do mercado sul-americano para o trio. No ano seguinte, os PDS lançaram um disco com regravações dos seus sucessos em espanhol e passaram a lotar estádios no país de Maradona. Mil novecentos noventa y uno

Mas esse foi mais um caso isolado do que uma tendência. A curiosa relação musical entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos – assunto principal do Festival Ultrasonidos, que estreia hoje, no Futuros, num grande abraço do Festival Multiplicidade –  é marcada por inúmeros flertes ocasionais, como esse dos Paralamas com Fito Paéz, mas ainda parece faltar “mucho” para o romance ideal.

É certo que Caetano Veloso se declarou à América, que os Secos e Molhados saudaram o sangue latino, que João Donato jogou um molho de salsa na bossa nova, que Milton Nascimento encontrou Mercedes Sosa e que Paulinho Moska voou junto com Jorge Drexler. Na grande linha do tempo, porém, esses são pontos isolados, cheios de espaços vazios entre eles. E aí começam a surgir as interrogações. Que pasa?

Por que esse intercâmbio não é mais frequente? Por que na escalação dos festivais de música na América do Sul existem bandas da Argentina, Chile, Colômbia etc, e nenhuma banda do Brasil? Por que a escalação dos festivais de música no Brasil não incluem bandas da Argentina, Chile, Colômbia etc? Por que parecemos ouvir mais o que é produzido nos EUA e na Europa do que o que é feito ao nosso redor? É por causa do idioma? Hablamos apenas english? Que pasa?

Respostas na ponta da língua, ninguém tem. Mas existem novos sinais no ar e eles são animadores. O grupo Braza, que tem o DNA dos Paralamas, gravou com o grupo uruguaio Cuatro Pesos de Propina. Estrela emergente, a cantora Luciane Dom, que fez recentemente uma residência artística na Colombia, lançou um single com o grupo local Esteban Copete y su Kinteto Pacfico. E o BaianaSystem, um gigante que não para de crescer dentro da moderna MPB, vive reforçando seus laços com o continente, como demonstram os álbuns “Ato 3: América do Sol” e “Oxeaxeexu”.

E o Festival Ultrasonidos tenta fazer a sua parte, na busca por aproximações, carinhos e gentilezas entre o Brasil e sus hermanxs, sempre no mais sincero portunhol. Nessa edição, as residências  artísticas, marca do evento, são entre o grupo vocal Femina, da Argentina, e o pianista afrofuturista Jonathan Ferr, e entre a multi-instrumentista Kaleema, também argentina, e a cantora Filipe Catto. As duas duplas – que passaram a semana juntas em estúdio – vão apresentar o resultado das residências em shows, a partir das 19h, no teatro do Futuros – Arte e Tecnologia. A noite vai incluir também debate, instalações, intervenções do percussionista argentino Agustin Rios e DJs da Festa La Cumbia.

Quis o destino que esse abraço entre os dois países acontecesse na véspera do confronto entres eles, no dia seguinte, na final da Libertadores. Como vai ser no campo do futebol, só saberemos depois do apito final. Mas no campo da música, vai ser tudo lindo. La garantia?

Texto: Carlos Albuquerque

Foto de Batman Zavareze