Ritmo e poesia embalam a reta final do Multiplicidade 2019

Leiame2

Leiame4

Alice Ruiz, Cecília Meireles, Marta Porto, Paulo Leminski, Ariano Suassuna, Paulo Mendes Campos, Manoel de Barros, Vinícius de Moraes e Fernando Pessoa foram alguns dos autores baixados pela memória dos presentes ao ato “Leia-me”, que marcou, com suavidade, o encerramento da ocupação do Festival Multiplicidade 2019, neste domingo, no Oi Futuro Flamengo.Trechos das obras foram lidos e compartilhados em uma roda formada por artistas desta edição (Dani Dacorso, Denise Milfont, Rodrigo Penna) e público, numa circular demonstração de afeto e união, comprovando que a poesia do conhecimento é o fio condutor para a existência em um Brasil de cabeça para baixo.

Digital1

Digital2

A reta final do festival teve também, na sexta passada, o ato “Estudando o dub”, uma aula musical sobre reggae, comandada pelo DJ e produtor Marcus MPC. Mixando sons (tocados em vinil) e imagens de arquivo, o líder do Digitaldubs usou a potente parede de som do coletivo para contar a evolução do militante ritmo jamaicano, dos seus primórdios nos anos 60 até às conexões com o Brasil, via funk, hip hop e MBP, muitas delas em canções que o próprio Digitaldubs lançou, em parcerias com Mr Catra, B Negão, Tom Zé e Gilberto Gil. Foi uma lição para aprender dançando.

Aula2

Aula1

No sábado,a história foi outra, mas não foi muito diferente. Sinara Rubia e Veruska Delfino comandaram a aula-intervenção “Brasis”. No ato, elas falaram sobre as ações transformadoras de mulheres – como elas, que atuam na Agencia de Redes para a Juventude – em territórios periféricos e a rede de afetos gerada por tais atividades.

Poetas1

Poetas2

Na sequencia, a contação de histórias ganhou outro ritmo, primeiro com a impactante presença dos Poetas do Vagão, coletivo nascido na Baixada Fluminense, que atua no metrô do Rio, mais especificamente no espaço entre as estações São Conrado e Jardim Oceânico. Fora dos limites de um trem em movimento, o grupo fez uma performance teatral, com DNA de hip-hop.

Slam1

Slam2

O embalo combativo daquele sábado à noite foi concluído pelo coletivo Slam das Minas RJ, com um polaroide de suas batalhas de ritmo e poesia em que todxs envolvidxs saem vencendo. “Foi uma das coisas mais potentes e escancaradas de Brasis que vi nos últimos tempos, o grito da urgência da periferia quando mistura anarquia com arte”, falou o curador Batman Zavareze, ainda no impacto das apresentações.

Fotos: Coletivo Clap

 

 

A arte em câmera lenta de Alfredo Alves e João Oliveira

Fred

A instalação “Fala que eu te escuto” tem causado um efeito especial em quem passa pelo Oi Futuro Flamengo durante a ocupação do Festival Multiplicidade 2019. Localizada no térreo, em sintonia com a performance “Pegue – Leia – Doe”, ela traz uma série de imagens ampliadas que, num primeiro olhar, parecem perfis fotográficos até que uma leve piscadela ou qualquer outro movimento dos seus 150 personagens revela que são, na verdade, pequenos filmes em velocidade superlenta. Autores da obra – nascida a partir de registros do público feitos durante a participação do Multiplicidade no ColaboraAmérica, na Fundição Progresso, em 2018 – o fotógrafo (e percussionista) Alfredo Alves (acima) e o editor João Oliveira (abaixo) explicam que onda é essa.

Como é que surgiu esse trabalho? Quando vocês fizeram os registros no ColaboraAmérica, na Fundição Progresso, há dois anos, existia a intenção de fazer uma instalação?

Alfredo Alves – Naquela edição do Multiplicidade, a gente trabalhou muito com time lapse, transformando dias em segundos, superacelerado. E ai teve um momento em que a gente entrou numa de fazer o oposto, de desacelerar. Veio então essa ideia do Batman de capturar, durante o ColaboraAmérica, olhares, com duração entre dois e quatro segundos, e transformar num vídeo mais longo.
João Oliveira – Inicialmente, era para ser algo interno, institucional. Não havia intenção de criar algo a partir daquilo. Mas quando a gente viu a riqueza do material, pensamos em fazer algo além. A ideia inicial do Fred, inclusive, era de usar duas telas, como se as pessoas estivessem se observando, mas acabamos com uma só.
Joao

Que técnica é aquela, que parece foto mas é filme? Algum tipo de “slow motion”?

JO – Foi um processo aparentemente simples. O Fred filmou tudo em alta resolução, em 4K. Depois, eu participei da edição, usando um slow-motion de 30% em relação ao material original. Foi uma medida que permitiu criar o efeito visto na hora, que não é o slow tradicional e fica mais parecendo uma foto. Até que a imagem se move.

AA – Foi o conceito do parado sem ser parado.
Fotos: Aicha Barat

Dani Dacorso captura memórias do passado em ‘Incorporais’

Dani Dacorso multi 19

A captura do invisível dá o tom mágico da instalação “Incorporais”, da fotógrafa e artista visual Dani Dacorso, um dos destaques do Festival Multiplicidade 2019. Nela, registros de pessoas envoltas em tecidos brancos e maquiagem fosforescente – feitos durante uma residência artística em um hotel na zona portuária do Rio de Janeiro, em 2016 – evocam a dolorosa memória daquela região, antigo mercado de escravos na cidade. Projetadas em uma tela transparente, as imagens parecem voar e dançar, como fantasmas do passado, ao som do percussionista Leo Leobons.

– É como se eu  estivesse registrando e a presença de seres invisíveis pelo  seu contorno – conta Dani – E o tambor traz uma carga ancestral

Como surgiu “Incorporais”?

Dani Dacorso – O trabalho começou numa residência artística que fiz em um hotel na praça Mauá. A  ideia inicial era fazer retratos no meu quarto. Resolvi usar luz negra, ou ultravioleta induzida, que faz com que os objetos e materiais que são brancos e fosforescentes brilhem, enquanto outros que não reagem a ela aparecem escuros. Me interessava usar os  extremos opostos  da escala tonal – preto e branco – para demarcar limites. Como se eu  estivesse registrando a presença de seres invisíveis pelo  seu contorno. Fantasmagorias, arquétipos, formas pensamento…

De que forma a percussão de Leo Leobons contribui para a instalação?

DD – Uma coisa que eu amo no Multiplicidade é a possibilidade de trabalhar com outros artistas num atravessamento de linguagens. Nesse sentido, a presença do Léo – cujo trabalho  admiro há tempos – potencializa o trabalho, não só pelo aspecto  cênico da presença dele no palco com o tambor, que dá à apresentação um caráter performático, mas também pela condução, um caminho que a música cria para as imagens. E o tambor traz uma carga ancestral, sem a gente precisar ficar explicando muito;  definindo quem é o que.

Qual o significado de representar o invisível?

DD – Como diz Anne Cauquelin –  tirei o nome do trabalho de um livro dela, chamado  “Frequentar os incorporais” -, na arte contemporânea estamos sempre caçando o invisível, tentando dar forma ao que não tem. Sobre o invisível , podemos chamá-lo talvez de…inconsciente? Tem o que a gente chama de espiritual, mas também passa por coisas que a gente sente, por relações e também tem o invisível das pessoas fotografadas, que é desvelado no gesto. Nesse sentido, “Incorporais” é um  trabalho  colaborativo, feito de representações múltiplas.