A Tempestade Midi, de DMTR, deixou uma onda de placidez em sua passagem

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Texto: Carlos Albuquerque | Vídeo: Glauber Vianna | Fotos: Elisa Mendes

A previsão do tempo para o fim de semana passado na cidade do Rio de Janeiro foi de céu encoberto, ventos quentes do quadrante norte, pancadas de chuva ocasionais e temperatura média em torno de 24 graus. No festival Multiplicidade, no Oi Futuro Flamengo, os dias foram marcados por uma singular convergência de nuvens de arte e tecnologia, provocada pelo artista digital Dimitre Lima (DMTR), batizada de “Tempestade Midi”. A formação desse fenômeno eletrônico – que deixou várias pessoas momentaneamente desabrigadas da realidade – pôde ser acompanhada ao longo da semana.

Durante três dias e três noites, DMTR se instalou no teatro do local, criando as condições ideais para a “Tempestade Midi”. E em vez de fechar o tempo, abriu seu processo criativo para a visitação pública. Numa bancada, instalou computador, sintetizador analógico (Korg Minilogue), monitores, pedais, circuitos e demais ferramentas. Pelo espaço, espalhou oito triângulos de LED, cada um deles com uma programação individual, oriundos da obra “Estilhaço”, que apresentou em São Paulo, meses atrás. Alguns visitantes, desatentos, entravam no teatro e se retiravam rapidamente em busca de abrigo, como se não quisessem atrapalhar o trabalho. Outros, mais ligados, se postavam no local e acompanhavam, atentos, as correntes midi ganhando força, como se fossem caçadores de tempestades artísticas.

– Achei interessante colocar esse processo completamente aberto. Foi algo diferente pra mim, nunca tinha experimentado isso. Algumas pessoas ficaram acuadas, achando que não podiam atrapalhar, mas, no geral, foi muito interessante a reação delas – disse DMTR, durante a semana.  – Pra mim, o processo é parte do resultado.  Sempre que estou construindo alguma coisa, já estou tendo ideias para outras coisas, num processo cíclico, uma coisa sempre influenciando a outra. Nesse sentido, “Tempestade Midi” é uma continuação ou mesmo uma evolução de “Estilhaço”, que era um trabalho mais contemplativo. “Tempestade” também tem um processo automático, mas está aberta a participações, a ter algo performático.

De fato, quando a instalação ficou pronta, no fim de semana, ela pôde ser curtida, inicialmente, de forma mecânica. Era só se jogar num dos sofás do teatro e ouvir os suaves loops musicais criados por DMTR estimulando as sequências de luzes e cores nos triângulos. Mas ela ganhou força sensorial mesmo quando ele recebeu o reforço de fontes externas, com a participação, ao vivo, de Gab Marcondes, na flauta, e de Nico Spinoza (assistente de direção do festival), no baixo elétrico, para uma longa sessão de improviso. Juntos, os três atuaram como brisas marítimas dentro da agitação, construindo hipnóticas bases instrumentais, que remontavam ao trabalho de artistas como Date Palms, Tim Hecker e Marielle V. Jakobsons. O mantra pareceu atingir, indistintamente, crianças e adultos presentes ao local, levando todos a um fugaz espaço fora da realidade.  E, ao final, a cidade que costuma saudar o pôr do sol, aplaudiu a passagem da tempestade midi e a placidez que ela despejou sobre nós.

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TEMPESTADE MIDI – DMTR from Festival Multiplicidade on Vimeo.

 

A hipnótica instalação “Xingu Ensemble” fecha uma semana de intensas emoções com os Kuikuros no Rio

XINGU KUIKUROS from Festival Multiplicidade on Vimeo.

Por Carlos Albuquerque

Estive na aldeia Ipatse, da comunidade Kuikuro, no Alto Xingu, algumas vezes, eu acho. Na primeira vez, extasiado, fiquei apenas girando em torno de um integrante que, no meio da mata, com a mão levantada, parecia sinalizar alguma coisa. Ouvi também uma voz, serena e firme, contando, na língua karib, uma bela história sobre caça, amizade, companheirismo, vida e morte, tendo ao fundo os mais variados sons da floresta. Na segunda vez, já à vontade, mas ainda sob encanto, circulei mais. Adentrei a mata, fui para a esquerda e para a direita, para frente e para trás. Vi mais kuikuros espalhados pelo caminho –  alguns em fila, outros num círculo. Passei por dentro de uma oca e vi os locais trabalhando em alguma coisa. Foi da terceira vez em diante, porém, que  a viagem se tornou mais longa,  intensa e poética.  Solto na aldeia, rastejei pela terra como uma cobra, subi nas árvores como um macaco e voei como um gavião-real por cima de oito ou nove kuikuros sentados, lado a lado, em algum tipo de reunião.

E quando estava olhando as estrelas, pronto para beijar o céu, alguém me cutucou e avisou que meu tempo tinha acabado. Tirei os óculos de Realidade Virtual e os fones de ouvido e despertei. Minha experiência com a  “Xingu Ensemble” tinha acabado e estava de volta ao teatro do Oi Futuro Flamengo, de onde nunca tinha saído, eu acho.

Realizada no sábado e no domingo passados, a instalação interativa criada pelo xamã digital Clelio de Paula – um hipnótico e imersivo diorama em 3D, reproduzindo áreas da aldeia visitada por ele – foi um mágico encerramento para uma semana de volumosas emoções com a presença de nove integrantes da comunidade Kuikuro no Rio durante o festival Multiplicidade, resultado de uma parceria artística sugerida por Takumã Kuikuro, um dos mais ativos integrantes daquela comunidade, e produzida pelo People´s Palace Projects, da Inglaterra.

Como se tivessem sido disparadas pela “Xingu Ensemble”, as lembranças desse encontro – capturadas ao longo de três dias de agitada programação  – ressurgem, agora, como flashbacks multicoloridos de som surround.

Vejo os kuikuros se pintando, todos juntos, numa das salas da produção. Ouço a fala forte do cacique Jacalo Kuikuro contra os desmandos do trôpego governo federal (“Por isso, dizemos ‘Fora Temer, Anta fica’”), durante a apresentação do projeto com os curadores-residentes Gringo Cardia, Marcus Faustini, Jailson de Souza e Batman Zavareze. Volto à  aula de karib com Yamalui Kuikuro e clico na escrita que ele deixou no quadro (Konilope=passado, Andongo=presente, Kogetsingoingo=futuro). Assisto à fascinante palestra do britânico Ferdinand Saumarez, da Factum Foundation, sobre técnicas de digitalização de áreas culturais ameaçadas e o uso dessa avançada tecnologia no Xingu. Tenho uma surpresa com a presença do antropólogo e ex-presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, iluminado e cenograficamente postado no meio da plateia, para um bate papo com Paul Heritage (da PPP) sobre a situação dos povos indígenas no Brasil. Me encanto com a apresentação de todo o grupo, cantando e dançando, na noite final.  E, por fim, reparo em Tuiuia Kuikuro, já sem os trajes típicos, na porta do prédio, esperando a van para ir embora,  vestindo uma camiseta com os dizeres “I (coração) Rio” e com o celular quase caindo para fora do bolso da bermuda.

Quando volto ao teatro para mais uma imersão na “Xingu Ensemble”, encontro Takumã, que resume o que sinto com uma frase certeira.

– Isso tudo parece um sonho, né?

Parece.

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XINGU ENSEMBLE – CLELIO DE PAULA from Festival Multiplicidade on Vimeo.

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O Xingu em mim, Por Batman Zavareze

Diários do Xingu e uma longa reflexão no caminho de volta para casa

Fotos de Batman Zavareze, Gringo Cardia e Marcia Farias

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Sol e lua

Ainda com a pele vermelha de urucum misturada com a poeira do barro fino que entra e não sai da gente, começo as 36 horas da longa jornada de volta para casa.

A ardência na pele me faz lembrar o tempo todo as indescritíveis visões do sol: exibicionista, redondo e quente, nascendo e se pondo no horizonte.

Quando o sol recuava, a lua no lado oposto, nascia, igualmente gigante e amarelada.

Uma beleza sem dimensão, em contraponto a uma natureza bruta e árida, tudo ao mesmo tempo.

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Onças

Sempre cercado por onças, tucanos, maritacas, antas, tatus, veados, piranhas e jacarés que algumas vezes se exibiam para nós, com câmeras na mão desesperados por uma foto, outras vezes desapareciam quando piscávamos os olhos, ariscos que só.

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Internet

Quando o gerador ligava por volta das 7 da noite por eternos e imaginários poucos minutos, era hora de corrermos para o posto médico, onde também coabitava a “lan House” da aldeia. Hora de ver a vida pelo WhatsApp, único meio de comunicação que funcionava para escutar notícias do mundo “civilizado”. Hora de se inteirar dos últimos escândalos do Brasil “oficial” e matar as saudades.

À noite, após o momento internet, um frio rasgante e incompreensível depois de um dia insuportavelmente quente que só uma fogueira ou as cobertas aqueciam o nosso sono.

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O convite

Esta viagem com todos estes atributos exóticos só existiu porque teve um convite diferenciado de um rapaz especial, o Takumã Kuikuro, direcionado para o inglês mais carioca que conheço, Paul Heritage. Assim, iniciamos uma nova relação de trocas entre estes dois mundos, urbano e indígena, que foi muito além do consumo de artesanatos ou o simples turismo em uma aldeia.

Faz dois anos que me emocionei com a proposta que estava sendo aplicada num fundo inglês através da People’s Palace Projects em parceria com o Festival Multiplicidade e outras instituições cariocas. Mesmo envolvido e ciente desde o início, não dimensionava o impacto que me causaria.

O projeto foi crescendo e acabou por trazer numa primeira viagem ao Xingu em maio de 2017 uma equipe do canal BBC.

Os ingleses vieram com tecnologias avançadas da Factum Foundation e usaram ferramentas como drones e scanners 3D em imagens e sons.

Posteriormente, de 26 de agosto a 15 de setembro do mesmo ano, entraram além do Festival Multiplicidade, o Observatório de Favelas (Jailson da Silva), a Spetaculu (Gringo Cardia), Redes da Juventude (Marcus Faustini) e os artistas residentes ligados a cada uma destas instituições.

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Takumã

Mas Takumã defendia uma ambição simbólica ainda maior; começar uma série de residências artísticas ampliadas onde os conhecimentos dos povos do Xingu, especialmente os Kuikuros, abrissem novas conexões através das artes para o mundo.

Sem imposições dos homens “brancos” para a aldeia, muito pelo contrário, a intenção é fazer um diálogo cuidadoso e construído coletivamente para enxergar as poéticas e pesquisas que sejam feitas em mão dupla.

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O temor

Existe na aldeia dos Kuikuros o temor do uso excessivo de celular, internet, tvs, roupas de grife e motocicletas, itens presentes na vida deles igual está na nossa. O que pode parecer perigoso para alguns se transforma numa provocação pela reflexão nos indígenas mais sábios que lembram da época que introduziram de forma radical o anzol, o facão, a panela de alumínio no cotidiano. Isso gerou uma enorme mudança de hábitos.

Cada ferramenta nova, tecnologia ou impactos de nosso tempo quando implementadas sem o pensamento crítico contam com uma certa irreversibilidade em nossas vidas. Uma das formas de se manter sempre acesa a chama da identidade da aldeia dos Kuikuros é definitivamente a língua, como os líderes me disseram.

Assim, mesmo que o conceito de um povo intacto seja uma perspectiva romântica, manter a língua preservada é de uma força inestimável.

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O mundo

Os Kuikuros tomaram o mundo. Da sua aldeia saiu um cineasta formado na Escola Darcy Ribeiro do Rio de Janeiro e premiado nos mais importantes festivais do planeta, o Takumã. Além disso, outras pessoas de seu povo ingressaram em renomadas universidades do Rio e de São Paulo: são professores, radialistas, líderes e políticos, que em paralelo não abandonam cargos ancestrais e hierárquicos na aldeia como caciques, pajés e guerreiros.

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Eu

Eu já havia estado em aldeias no início dos anos 2000 como fotógrafo documentarista quando fui a algumas tribos da Amazônia (inclusive conheci os famosos Xavantes) mas estar com os Kuikuros e pescar no Rio Xingu em pleno 2017 foi a realização de um antigo sonho.

Viajei com a ansiedade e a vontade de investigar como se fosse a minha primeira vez numa aldeia.

Partilhei momentos especiais com os nove artistas residentes  selecionados, com a equipe de produção da PPP e com o “cacique” inglês Paul Heritage. Tive também profundas conversas com o artista Marcus Faustini e o intelectual Jailson de Souza, meus companheiros de caminhadas e mergulhos diários.

Eu saio desta experiência maior, com a paixão e a generosidade de um povoado que te oferece tudo antes mesmo de saber o que eu tinha para oferecer em troca.

Valorizo ainda mais questões básicas de minha vida diante de tanta precariedade na infraestrutura e tamanha sabedoria dos Kuikuros para contornar as adversidades com criatividade.

Esta viagem, real e utópica, mexeu com a minha mente, minha alma, meu tempo, minhas prioridades, minha imaginação e minha saúde.

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O Festival Multiplicidade

De 17 a 22 de outubro, 9 Kuikuros estarão no Festival Multiplicidade completando um ciclo, vivendo a residência artística agora ao revés, no Rio de Janeiro. A CasaRio, em Botafogo, será sua Oca na cidade maravilhosa.

Durante uma semana eles irão visitar o Pão de Açúcar, a praia de Copacabana, o Cristo Redentor, o Festival do Rio (este foi um pedido de todos), a favela da Maré e se apresentarão durante 3 dias no Oi Futuro com palestras, debates, oficinas e performances de suas culturas.

Fecharemos uma primeira etapa e a flecha lançada das residências artísticas Kuikuro da nação Xingu estarão abertas agora para o mundo, com uma Oca sede construída e trazendo práticas, metodologias, processos e criações.

Viva o Xingu!!!!

Festival Multiplicidade 2025, de 07 de outubro a 11 de novembro de 2017.

O Xingu em mim.

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Como um ilusionista, Alex Augier comanda a revoada sensorial de “_nybble_”

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Por Carlos Albuquerque.

Foi uma ilusão bem poderosa. Postado no centro do palco do Oi Futuro Flamengo, em frente a seu equipamento, cercado por quatro telas freneticamente iluminadas, o artista francês Alex Augier pareceu se agigantar como o Dr. Manhattan, fantástico personagem da cultuada HQ “Watchmen”, de Alan Moore. Por um breve período – cerca de meia hora terrestre – ele brilhou no frio do espaço, separando e reagrupando partículas sonoras e visuais durante a sensorial experiência que é “_nybble_” (o termo significa a metade de um byte). Os pufes do local amaciaram a onda.
“Nunca pensei na idéia de parecer um mágico, mas sem dúvida há um pouco de ilusionismo em esconder parte do meu equipamento durante a performance”, me disse ele, um pouco antes da apresentação.
Mas não foram coelhos o que ele trouxe na cartola. Foram pássaros – ou melhor, a revoada deles – que serviram de inspiração para as imagens, por vezes frenéticas, por vezes plácidas, que eram projetadas, randomicamente, nos telões. Como o coletivo 1024 Architecture, também francês, Augier usa essas lâminas como se fossem portais para outras dimensões. Assim, sincronizados com os sons quadrifônicos que ele produzia em um envenenado sintetizador modular – verdadeiras rajadas eletrônicas, com subgraves em fúria – os desenhos se moldavam em formas variadas, ora parecendo partículas de um átomo, ora pontos de uma galáxia distante, ora qualquer coisa além da imaginação.
Em determinado momento do transe, sons e imagens, formas e ambiente, tudo o que era gerado/moldado através da caixa mágica de Augier parecia uma coisa só, “um objeto orgânico quase palpável”, nas palavras dele. Mas uma brisa de silêncio logo interrompeu a viagem, sinalizando o fim do espetáculo. Augier saiu da caixa, não mais parecendo um gigante com poderes sobrenaturais, e agradeceu a todos pela presença. Alheios aos aplausos, meus neurônios, super-estimulados, ficaram pedindo mais e mais. “_nybble_” me deu asas, mas metade de um byte – e de uma hora – parece ter sido pouco.


Fotos: Elisa Mendes

Abrindo a caixa da Manifestação Pacífica

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Instalação Manifestação Pacífica – Festival Multiplicidade 2025 – Oi Futuro Flamengo – Rio de Janeiro – Brasil

 Instruções de segurança:

Cuidado! Risco de choque político ao assistir

Contém:

1 frase de Simone Weil

1 imagem, em loop, de Fernando Collor, citando Simone Weil.

Santinhos de Michael Temer, Alexandre de Moraes, Aécio Neves, Ronaldo Caiado, Ricardo Barros, Gilmar Mendes,Benjamin Steinbruch e Mendonssa, perdão, Mendonça Filho.

1 palanque vazio

1 faixa presidencial sem uso

1 contrato de trabalho não assinado

1 figurante imprevisível

2 caixas de som, reproduzindo votos de “sim”, “não” e algumas abstenções

1 painel com o corpo de um presidente para inserir o rosto

1 imagem, em loop,de uma figura masculina pixelada com traje presidencial

1 provocação

1 subversão

1 reflexão (não incluída)

Obrigado por consumir esse produto.

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MANIFESTAÇÃO PACÍFICA from Festival Multiplicidade on Vimeo.

 

 

Entre o silêncio e o barulho, os ecos de uma memorável noite de estreia do Multiplicidade 2017

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Por Carlos Albuquerque

Quatro minutos e trinta e três segundos. Foi o tempo em que o Oi Futuro Flamengo pareceu suspenso no ar, como uma cena perdida de “Além da imaginação”, durante a estréia do Multiplicidade, na noite de sábado passado. Fora uma moça de óculos que resmungava de sua pipoca sem sal, todos os presentes ao debate sobre barulho e John Cage (1912-1992)- conduzido pelo curador Batman Zavareze e pela editora Isabel Diegues – se mantiveram, respeitosamente, em silêncio. Alguns giraram o pescoço, outros olharam o relógio, mas nenhum outro suspiro foi ouvido. No centro, de pé no hall do prédio, quase imóvel, segurando uma flauta longe da boca, o convidado Marcelo Brissac interpretava a anti-música de Cage – compositor norte-americano de vanguarda – como pedia o seu criador: em silêncio.

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Acompanhada apenas pelos sons vindos da Rua Dois de Dezembro, onde na véspera tinha acontecido um ruidoso protesto contra a censura,“4’33” foi a trilha-sonora perfeita para a abertura de um evento instigado por tempos de muita gritaria e de ruídos propositais na comunicação. Estudioso da obra de Cage, um desafiador das convenções musicais, Brissac  contextualizou o   trabalho do artista, driblou boas provocações da platéia (“Se os músicos ficarem em silêncio, eles não vão ficar desempregados?”, perguntou alguém) e lembrou, com precisão, de uma de suas frases emblemáticas (“Quando ouvimos Beethoven e Mozart, vemos que eles sempre parecem os mesmos, mas quando ouvimos o som do trafego, ele sempre vai ser diferente” ).

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De fato, o tráfego que aconteceu no local em seguida foi especialmente diferente.  A movimentação dos integrantes da Quasi-orquestra – formada por integrantes de instituições como Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, Orquestra Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica da UFRJ e Orquestra Sinfônica Nacional – se misturou com o barulho do público, que chegava para lotar o local. Posicionados e regidos pelo maestro Rafael Barros de Castro, os músicos iniciaram a apresentação com outra obra provocadora: “A despedida”, sinfonia do compositor austríaco Joseph Hadyn.

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Composta em 1772 como um protesto de Hadyn e de outros músicos contra as péssimas condições de trabalho oferecidas pelo príncipe húngaro Nikolaus Esterhazy , a atualíssima peça teve seu caráter performático – ao longo de sua duração, os músicos costumam se retirar em silencioso protesto – radicalmente atualizado no Multiplicidade Em vez de se ausentarem, os integrantes da Quasi-orquestra – que igualmente sofrem com maus empregadores  – se espalharam pelos oito andares do prédio. Em duplas ou sozinhos, foram ocupando marcações previamente escolhidas – entre os degraus, ao lado dos elevadores, no meio do café, em frente a uma obra – para uma avançada e arriscada desconstrução  da “Sinfonia nº 40”, de Mozart.

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Plugado em cada um dos músicos, que usavam pontos eletrônicos, o maestro regeu a obra no térreo, enquanto o som ia sendo executado,  verticalmente, pelo ambiente. As inúmeras possibilidades de apreciação dessa experiência – testadas pelo público em romarias para cima e para baixo – culminavam com uma instalação no teatro, no último andar,  No local, sem a presença de qualquer músico, doze caixas espalhadas registravam os sons produzidos em cada marcação, gerando um surround de presenças e ausências, numa  curiosa provocação sensorial: o todo sendo ouvido, apesar das barreiras.

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Depois, o tráfego sonoro foi o da volta dos músicos ao posicionamento original, no térreo. Novamente acústicos e desplugados, eles executaram a sempre assombrosa “Carmina burana”, muitos ali repetindo a célebre apresentação do mesmo tema nos “Concertos pela Democracia”, no OcupaMinc, no Palácio Capanema, no Centro do Rio, em 2016, quando a audiência colaborou com um arrepiante coro de “Fora Temer”.

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No Multiplicidade, o coro se repetiu , para êxtase geral, com o maestro virado para a plateia, quase como uma estrela do rock, regendo, emocionado, os pulmões em fúria.  Foi o catártico barulho final de uma noite iniciada, sugestivamente, com quatro minutos de silêncio.

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