Doze perguntas para Marco Donnarumma

 

1_Como é a sua base até chegar a desenvolver esses projetos?

Trabalho desde 2004 no campo de live media e performance. Meu dia-a-dia compreende em computadores, corpos, sons e imagens. Nos últimos cinco anos, venho criando performances que envolvem novas medias, instalações audiovisuais, e também participando criativamente em sistemas como cenários interativos para casas de espetáculos. Assim, venho desenvolvendo minhas próprias ferramentas para que a mensagem que quero passar seja feita da forma mais transparente, então eu gosto de criar meu próprio software usando ferramentas opensource e gratuitas e, posteriormente, criar dispositivos que posso aplicar em meu corpo.

2_Você pode falar um pouco da importância do Goldsmiths Digital Studios e do SARC no seu trabalho?

GDS e SARC vêm sendo excelentes centros de pesquisas por anos, mas apenas agora nós estamos contribuindo para a troca e também colaborações entre projetos e performances. No GDS, eu faço parte da equipe de pesquisa, liderado pelo artista e professor Atau Tanaka, pesquisando novas maneiras de execução e também interação entre público e música. Nós estudamos design de novos instrumentos musicais tentando fazer uma conexão com biotecnologia, o que é a minha área de especialização, junto com Inteligência Artificial, de forma que desenvolvemos novas noções musicais. Já o SARC representa a vanguarda dentro da música e sua relação com a emoção. Pesquisadores como Benjamin Knapp (que foi para o Virginia Tech recentemente) e Miguel Ortiz (nosso colaborador) têm focado seus trabalhos no entendimento da emoção na performance musical. Nosso interesse comum está aplicado ao “Liminal Corpus”, uma nova performance biomedia que apresentaremos no Rio junto com Anna Weisling e Miguel.

3_Em geral, qual importância da Goldsmith Digital Studios e Sarc Media Lab como instituições comparados a outros laboratório pelo mundo?

Não acho a comparação algo apropriado, pois todos os centros pelo mundo são igualmente importantes. No entanto, a relevância do GDS e do SARC para o nosso campo – novas tecnologias para performance musicais – é algo que fica claro nos trabalhos que estamos desenvolvendo. Acredito que o aspecto mais valioso de trabalhar num centro como o nosso é a capacidade de se conectar com outras pessoas e compartilhar técnicas e ideias. Um ambiente acadêmico pró-ativo pode ser incrivelmente produtivo.

4_ Você pode explicar as tecnologias usadas na sua performance e quem as criou?

A ideia geral por trás da nossa pesquisa – seja no GDS, seja no SARC – é a visão de um corpo que sofre intervenções de tecnologias. No GDS, nós trabalhamos com uma variedade de novos instrumentos musicais, como o Xth Sense (meu instrumento biofísico), o Biomuse (uma das interfaces pioneiras desenvolvidas por Benjamin Knapp e Hugh Lusted e usada por mais de 20 anos nas performances de Atau Tanaka) e o Mogees (uma interface que reconhece movimentos e gestos criada por Bruno Zamborlin). O SARC é referência na pesquisa de ondas cerebrais e outros sinais emitidos pelo corpo que são usados para performances musicais.

5_ Há alguma descoberta acadêmica ou científica que pode ser usada em outras áreas, além da performance artística em si?

 O que acho fascinante nesse trabalho é a troca constante entre ciência e arte. As tecnologias que usamos vêm originalmente desses estudos científicos, e são modificadas nos nossos centros de pesquisa para se adequarem a um propósito artístico. Isso pode ser incrivelmente útil, e dá como retorno para ambos os campos (científico e artístico) uma ferramenta que, embora não tenho sido desenvolvida para esse propósito específico, pode ser usada em diferentes objetivos.

6_Qual o futuro da arte nesse campo de diálogo entre ciência e tecnologia?

Tecnologias serão em breve tão transparentes no nosso dia-a-dia (já são, de certa forma), que isso faz com que fique cada vez mais difícil estar de fora dessa interação entre nós, tecnologia e o mundo. Computadores vão desaparecer diante dos nossos olhos e estarão onipresentes no nosso meio – e talvez nos nossos corpos também. Espero que até que isso aconteça tenhamos desenvolvido outra linguagem criativa, diferente da que estamos adeptos hoje em dia. Uma gama de ideias que não precise mais do avanço tecnológico para mudar a maneira com que expressamos nossa criatividade, mas alguma coisa que nós realmente tenhamos que descobrir.

7_ No campo das novas possibilidades tecnológicas, não apenas na arte, o que te impressiona?

Sempre me questiono sobre o fato de que nós ainda não produzimos um avanço tecnológico provavelmente desde a invenção do telefone. Gravação de sons e sua reprodução (analógica e digital) é uma das últimas novas tecnologias inventadas. O resto é uma reelaboração de velhas ideias, que não afetam diretamente a maneira com que vemos e vivemos no mundo ao nosso redor. Hoje, por exemplo, um computador é como um abacus, mas com a capacidade de cálculo de milhões em um curto espaço de tempo.

8_ “Hypo Chrysos” é visualmente impactante e hipnotizante. Quais são as referências e inspirações por trás desse projeto?

Há uma referência clara ao Inferno de Dante Alighieri, da Divina Comédia – um texto que, com certa sátira, descreve a viagem de Dante pelo Inferno, Purgatório e Paraíso. Na visão de Dante, o inferno é formado por círculos onde, cada um, corresponde a um tipo de pecado, e cada um com sua punição. Em um dos menores círculos, ele encontra os hipócritas, para os quais a punição é andar sem direção, vestindo uma capa feita de aço.

9_ Você pode nos falar um pouco sobre o desenvolvimento da performance que será apresentada no palco do Happenings/Multiplicidade? Embora você use um equipamento de alta tecnologia, existe algo de primitivo e tribal na maneira como você se movimenta com as cordas e as pedras.

Sim, isso é recorrente nos meus trabalhos. A tecnologia fica de fundo para que o foco esteja na percepção e na experiência física do público diante da performance. O desenvolvimento é rápido e fácil. Eu sou um amante da performance artística e hoje é raro ver novas tecnologias aplicadas a esse conceito. Então achei que havia aí um território a ser explorado junto a novas tecnologias, ciência e som. Um dos desafios foi achar um equilíbrio entre os vídeos e a minha performance  no palco. O visual é desenvolvido para apoiar e se integrar, e não ofuscar.

10_ Seu corpo responde aos estímulos de maneiras diferentes a cada performance? Há diferenças de um show para outro?

 Definitivamente. O corpo é um sistema improvável, então existem muitos agentes que afetam o seu estado, como a temperatura do ambiente, fatores de stress internos, alimentação etc. Tenho que estar focado em resistir às contrações musculares durante o espetáculo, e se deixo meu corpo ser afetado por condições externas, a performance não acontece. Por outro lado, quando estou ansioso, fico com a circulação sanguínea elevada, o que torna o som mais alto e mais rápido. Como consequência, a música muda totalmente e se torna mais densa, enquanto diferentes texturas vão aparecendo. É aqui que está o ponto mais interessante da performance: tenho que estar preparado para controlar não só a dor, mas também os sensores e os mecanismos psicológicos ativados pelo esforço contínuo e intenso.

11_ Como são esses cansativos e dolorosos 20 minutos em ação? Assistindo, parece haver algo como uma auto-punição. Há dor em cada movimento, mas, por outro lado, há um sentimento de aliviar as sensações e emoções através dessa dor.

Os blocos de pedra pesam 30 kg no total. Não é um peso impossível de se carregar, mas se torna um pouco difícil depois de carregar por um determinado tempo. No começo, não é doloroso, mas, depois de 5 minutos de esforço, as cordas começam a queimar a minha pele, e nos 10 minutos seguintes a dor na coluna começa a ficar difícil de suportar. Cada passo aumenta a dor, mas, ao mesmo tempo, conduz para o alívio final depois de tanto esforço. Normalmente, no dia seguinte, sofro de febre muscular. Depois de tanto esforço, os músculos ficam rígidos, e por isso a dor, porém essa é uma forma de prevenir maiores danos, pois a adaptação ao estado normal, de volta, foi muito rápida. Cada movimento se torna doloroso, por isso um ensaio, por exemplo, tem que ser dois dias antes da performance em si. Meus movimentos não são concebidos para tocar música, mas apenas para mover as pedras. A música e o visual surgem do interior do meu corpo, em vez de serem controlados por ele.

12 – Como os seus movimentos e sons atingem o público? E como esse público responde durante o show? Há uma troca que influencie suas reações no palco?

 Penso que a interação com o público acontece de duas maneiras. Existe um lado emocional que permite que o público desenvolva uma empatia com o performer, simplesmente porque é evidente o esforço crescente durante a performance. E o outro lado é um pouco mais complexo. O som que sai dos meus movimentos é reproduzido por 8 speakers. Essa ressonância do corpo faz com que haja uma conexão do meu corpo com os corpos da plateia. E isso só acontece porque a música que estamos presenciando está sendo gerada por um corpo em movimento. No fim da estreia na Espanha, em dezembro do ano passado, algumas pessoas disseram que seus próprios braços doeram, porque eles foram contraindo seus músculos, durante o espetáculo, sem nem perceber. Isso foi tão interessante, que eu comecei a estudar esse fenômeno, e eventualmente juntar alguns estudos científicos de um trabalho chamado “Proprioception, effort and strain in Hypo Chrysos: action art for vexed body and the Xth Sense”.