Gabriela Mureb conduz uma provocante sinfonia de máquinas

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Texto de Carlos Albuquerque. Fotos de Elisa Mendes.

O motor Honda, modelo GX 160, é um produto de força.  Monocilíndrico, funciona em quatro tempos, o que proporciona maior economia de combustível.  Tem 5,5 CV (Cavalo-Vapor) de potência e rotação de 3600 rpm. Pesa 15 kg e possui sistema de partida elétrico e manual.  Seu vício é a gasolina. Em pleno funcionamento, arrota monóxido de carbono (CO), um gás incolor, inodoro e bastante perigoso devido à sua toxidade.  Normalmente, é usado em equipamentos de construção civil, em equipamentos agrícolas e em karts. No sábado passado, no Multiplicidade, no Oi Futuro Flamengo, com replay no domingo, o GX-160 ganhou uma utilidade inesperada, transformando energia mecânica em arte, na performance “Máquina – Parte I”, de Gabriela Mureb.  Foi, possivelmente, a experiência mais radical – e, felizmente, não explosiva – de todos os 13 anos do festival.

A “máquina” de Gabriela mexeu com os humanos presentes antes mesmo de começar a funcionar. Afinal, todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite, mas não precisar assinar um documento assumindo a responsabilidade de participar de uma experiência de risco. A razão de tanta precaução estava dentro do teatro: vinte motores GX-160, enfileirados, como uma ameaçadora orquestra de metal. Eles iriam “solar”, ligados, durante aproximadamente 20 minutos, tempo limite para a segurança de todos. Para assistir ao espetáculo, realizado num lugar fechado, seria preciso usar uma máscara de proteção contra gases tóxicos e óculos especiais. E a entrada seria pela saída de emergência. Desavisados, nem todos ali estavam preparados para serem tão sacudidos assim por meros motores estacionários (nome técnico do GX-160).

Na entrada do teatro, bombeiros e seguranças conversavam, com as sobrancelhas levantadas, e olhares de preocupação. Uma pessoa da produção, ao saber de véspera do que se tratava, acordou no sábado com herpes, de tanta ansiedade. Ela não deve ter melhorado quando um funcionário passou pelo café carregando uma maca. Para não entrar no clima, resolvi me distrair olhando o manual do GX-160 pelo celular. E estacionei nas instruções de segurança.

“Os gases do escapamento contêm monóxido de carbono. Nunca funcione o motor estacionário em uma área fechada. Certifique-se que o local possui boa ventilação”.

Mesmo assim, todos nós respiramos fundo e entramos.  Cada cadeira continha uma máscara e um par de óculos. Rapidamente, as 43 disponíveis ficaram ocupadas por clones de “Bane”, o vilão vivido por Tom Hardy, em “Batman – O cavaleiro das trevas ressurge”. Sentado ao meu lado, meu amigo já começou a suar frio e olhar para a saída (perto de onde estávamos, na última fila). Não demorou muito e Gabriela surgiu em frente aos motores (cada um deles com um nível de combustível) e começou a disparar um a um, como se estivesse dando partida em uma lancha.

Em poucos minutos, todos os vinte aparelhos – ativados com um novo significado – passaram a produzir um barulho mecânico, repetitivo, “tocado” por correias, velas, filtros, porcas e válvulas. A sensação provocada por aquela estranha sinfonia era de sufoco, alimentada pelo ar carregado e por tristes lembranças de câmaras de gás e suicídios em garagens. Arte extrema, pensamentos idem. A experiência proporcionada por Gabriela era o oposto da onda macia e psicodélica de “Tempestade Midi”, instalação apresentada por Dimitre Lima, há uma semana, no mesmo local. Sua trip era bad, um aperto no pescoço.

Fora de cena, ou talvez, sem saber, parte dela, meu amigo saiu de fininho, batido pela claustrofobia. Outras pessoas seguiram o mesmo caminho, um deles cambaleando e apoiado por um bombeiro. Com os olhos ardendo, tentei resistir, não muito bravamente, até o final.  Quando comecei a lacrimejar, apertei o botão de “arrego” e me encaminhei para a saída. Ainda parei nas escadas e vi um pouco do final da performance, com as máquinas se desligando em sequência até o ruído derradeiro. E o silêncio, enfim.

Do lado de fora, o cenário era apocalíptico. O bar estava fechado e não havia mais ninguém no local. O cheiro de combustível impregnava todo o prédio. No terraço, que funcionava como área de recuperação, as conversas tinham um riso nervoso. Uma mulher relaxava numa cadeira, fumando um cigarro e liberando 6.700 substâncias químicas no ar. O clima não era de lounge. Contaminado e arrebatado por “Máquina – Parte I”, tinha que ir embora rapidamente. A gang da Honda tinha dominado o pedaço. E eu era só gasolina.

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