O festival é um percurso que só vale quando é percorrido

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Por Batman Zavareze.

Fotos Batman Zavereze e Elisa Mendes.

Nesta temporada fui chamado de cacique, maestro, globetrotter, louco e há poucos dias como um cara que produz e faz. Que faz mesmo. Todas as classificações citadas acima foram feitas por pessoas que respeito e escuto. Esta percepção me instigou a escrever esta análise final da temporada, ou melhor, um desabafo de alguém que está totalmente embrenhado – da gestão a curadoria – por trás desta cena.

No último sábado, 11 de novembro, encerramos a temporada 2017 do Festival Multiplicidade mais intenso dos nossos 13 anos de vida. Um ano contaminado por um baixo astral sem fim, mas por incrível que pareça, tínhamos um cenário super positivo ao nosso redor e o festival voou em céu de brigadeiro.

Numa das apresentações, o jornalista Carlos Albuquerque (para mim, Calbuque), convidado para investigar, com olhar crítico, através de seus textos, todas as nossas experiências do ano, me perguntou, ainda atordoado ao sair do teatro do Oi Futuro Flamengo após a performance “Máquina – Parte I” de Gabriela Mureb, se aquele tinha sido o momento mais radical de nossa história.

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Hesitei, ainda com olhos ardidos do gás carbônico emitido pelos 20 motores que funcionaram como uma orquestra de rumores, numa espécie de deferência contemporânea a Luigi Russolo. Não consegui responder de bate-pronto porque passou um filme na minha mente, ao revés e acelerado, um time lapse de tudo o que tinha sido feito da criação do festival até ali.

Screen Shot 2017-11-16 at 12.08.29 PMO Multiplicidade surgiu em 2005, com performances inéditas, quinzenais, de maio a dezembro. No centro cultural, ele deu início a um diálogo de muitas possibilidades híbridas, que seriam atravessadas pela tecnologia. Promoveu encontros inusitados, cumprindo um papel plural e pioneiro, misturando linguagens que até então pouco se cruzavam, revelando ao público o papel da multiplicidade nas artes, quando ninguém ainda falava dessa sobreposição como regra artística.

Desde então, foram mais de 800 artistas de todo o mundo, mais de 300 performances, cerca de 70 mil pessoas presentes nas apresentações, 14 aparições no exterior, 11 livros editados, sete prêmios nacionais e internacionais, uma série no Canal Brasil que atingiu um milhão de pessoas e, por fim, três teses de mestrado e doutorado que tiveram o festival como tema de pesquisa. Somos e fomos um impacto na cidade, no público, na economia criativa e na cena artística ao longo de 13 anos continuados.

Por isso, balancei na resposta, porque, no fundo, sabia que radical é ter coragem para fazer um festival no Rio e no Brasil.

Em “2025”, ou melhor, em 2017, para o público e imprensa, o festival começou no dia 07 de outubro e durou “somente” 35 dias de atividades ininterruptas. Não é pouco, mas um festival com a ambição do Multiplicidade opera o ano inteiro, nunca para. Ele começa na conceituação, na captação, nas pesquisas, nas viagens, nas residências artísticas (este ano passamos 20 dias em agosto no Xingu com 15 artistas e produtores convidados), na convocação de artistas, na formação de equipe, nas burocracias, etc e etc.

Nossa loucura, utopia, resistência, insistência e romantismo artístico fazem com que ele comece muito antes do início oficial.

Nessa dinâmica, minha função como curador é um pouco mais profunda porque eu idealizei o festival que descrevo aqui. Mesmo sabendo de sua dimensão como plataforma artística para a cidade, ele é, na verdade, como um filho.

Por isso a carga emocional das decisões sempre é movida por extremos, seja na alegria, na loucura, na paixão, nos acertos e nos fracassos. Costumo dizer para a equipe mais antiga e já automatizada aos costumes de realização que precisamos ser mais curiosos com as fórmulas conquistadas para subverter o modelo da gestão do próprio festival. E aos mais novos, aos calouros da equipe, digo que preciso ser surpreendido e por isso, peço e incentivo que tomem o risco de executar e de errar para aprendermos sempre.

Este ano, tínhamos o norte conceitual do BARULHO. Queríamos estimular a nossa escuta e enxergar melhor o que está ao nosso redor, em meio às distopias do mundo atual e junto às muitas metáforas surgidas quando pensamos em “fazer barulho”

Para ajudar a consolidar essa idéia, nos apropriamos da poesia concreta de Lenora de Barros e Raul Mourão, com design de Marcelo Pereira.  E ela passou a marcar o festival, com um vídeo piscando em negativo e positivo: OBARULHOÉVISUAL / OBAGULHOÉVISUAL.

Na estreia, tivemos a Quasi-Orquestra, com músicos sinfônicos virtuosos desafiados a tocar, de forma fragmentada, pelos oito andares do Oi Futuro Flamengo.  Provocada pela orquestra durante uma interpretação furiosa da imortal “Carmina Burana”, a plateia reagiu, indignada, com um coro de “Fora Temer”.

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Em seguida o coletivo oculto Manifestação Pacífica subiu o tom com a panfletagem do pior do Brasil, numa instalação performática sobre os nossos políticos.

A primeira atração estrangeira foi o francês Alex Augier, com “_nybble_”, uma performance-escultura-instalação com projeções holográficas sincronizadas com um potente som eletrônico.

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Com a chegada dos Kuikuros – resultado de uma residência artística iniciada antes do início do festival, com uma visita à sua aldeia, no Alto Xingu -, nós “perdemos o chão”. Não me conformava em fazer um festival no Brasil, com multiplicidade no nome, sem uma ocupação legítima de artistas indígenas.  E eles vieram como uma força da natureza, com seus rituais, suas linguagens, sua música e sua dança. A magia ficou completa com a instalação de realidade virtual “Xingu Ensemble”, de Clelio de Paula.

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Sem parar o bonde, artistas brasileiros residentes – DMTR e Fabiano Mixo – viveram uma imersão de construção colaborativa do que seria apresentado em diferentes momentos dentro do festival. Essa exposição do processo coletivo resultou em “Tempestade Midi”, de DMTR, “Mulher sem bandolim”, de Mixo.

Em paralelo às atrações principais, criamos uma residência artística no térreo do centro cultural ao longo de toda temporada. Foi um espaço inspirado na obra “Tropicália”, de Hélio Oiticica, que mais parecia um aquário de ideias e criações multicoloridas. Nesse local, chamado de Multi_Lab, aconteceram instalações, debates, workshops com brasileiros (incluindo os dez indígenas Kuikuros que estiveram conosco no festival) e estrangeiros, e também algumas performances singulares chamadas carinhosamente de QUEPORRAÉESSA?!!!

Então foi a vez de Gabriela Mureb, que chegou pedindo máscaras contra ingestão de gás carbônico, 20 motores barulhentos e um rigor de uma orquestra mecânica. “Máquina -Parte I” foi, definitivamente, nosso momento mais inusitado e – por que não dizer? – radical.

E como se já não estivesse suficientemente intenso, bateu uma ansiedade muito forte quando partimos para a Zona Portuária, ao Éden e a Utopia, nos últimos dias do festival. Conosco, vieram artistas do Sri Lanka, Itália, Espanha, Índia, Canadá, França, Inglaterra, Holanda, Estados Unidos e, claro, Brasil. Nomes que frequentam os maiores festivais internacionais de arte e tecnologia. A vanguarda audiovisual contemporânea em nossa culminância. Era como se tivéssemos pescado um pirarucu – o melhor e mais desejado peixe de nossos almoços na aldeia dos Kuikuros – e posto a mesa para o deleite do respeitável público.

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Começamos o Ocupa_Porto no Éden com “Avalanche”, o filme de Carlos Casas, que foi remixado ao vivo por artistas sonoros como Chelpa Ferro e Neil Leonard e Nikhil Uday Singh, ambos da Berklee College. Ainda nesta noite, Nado Leal fez um DJ set com sons pop eletrônicos da ásia central. Foi uma introdução para o dia seguinte, quando aconteceria a maior ocupação física do festival.

A programação desenhada não era nada popular. Era uma viagem ousada a vários lugares do mundo, tudo dentro de um armazém apropriadamente chamado Utopia.

Num espaço monumental para 4.000 pessoas, propomos algo para “somente” um grupo seleto de mil pessoas. Criamos uma house mix, que chamávamos de “Apollo”, para controlar e enxergar onde a luz deveria ser valorizada. Vídeos e sons funcionaram como um balé imersivo, no qual público e artistas seriam parte do mesmo jogo. Montamos um aparato para comandar uma ópera de um dia só.

Cansado da travessia e sem a menor chance de recuar, confesso que veio uma nuvem de pessimismo, seguido por um lapso de insegurança, pouco antes de abrirem os portões, afinal, todos os eventos possíveis e gratuitos aconteciam no mesmo sábado. Mas quem faz um festival sabe que, no fundo, “o que a vida quer da gente é CORAGEM”, frase de Guimarães Rosa que me persegue. Ao lembrar dela, minha chave mental apontou para uma única seta. VAI SER INESQUECÍVEL!!

Novamente o “BARULHO/ BAGULHO”, de Lenora de Barros e Raul Mourão, foi presente, projetado em duas telas enormes. Na sequência, o DJ francês Coni nos conduziu por sons e texturas contemplativas até a chegada do tão aguardado artista canadense Martin Messier. Em “Field”, ele criou um nervoso teatro de sombras com uma estrutura de peças e campos magnéticos, algo difícil de reproduzir em palavras. Teatro moderno digital.

Logo depois, Paul Jebanasam e Tarik Barri mostraram sua hipnótica performance audiovisual “Continuum AV”.  Alguns corajosos sentaram e viajaram naquela densa abstração.

A partir dali, a energia só subiria, com o Looping: Bahia Overdub (numa coapresentação com o Festival Panorama), depois com o Ninos du Brasil e, por fim, com a Vizinha Faladeira. Dub, punk e samba, todos afinados e conduzidos pela animação. As portas de saída do armazém foram abertas às 3h. Como um cortejo de carnaval, todos saíram atrás da bateria da escola até o porto maravilha.

Foram dez línguas faladas ao longo de 35 dias, desde a residência no Xingu até aquela Utopia. Depois de tantas vivências inesquecíveis, é preciso dizer: Obrigado / Thank you  / Merci / Grazie / Gracias/ Aingo Hegüei / Graciès / Bedankt  / Stutiyi / Dhanyavaad.

E a última frase cantada no Armazém da Utopia apontou para o nosso próximo alvo: “Como será o amanhã?”

Em 2018, começaremos nossa pesquisa justamente sob a regência do AMANHÃ.

Ainda ecoando tudo que fizemos, parto na próxima semana para participar do encerramento da Bienal de Veneza, seguindo depois para o Festival de Live Cinema Fotônica, em Roma, e para uma visita rápida ao centro de arte digital ZKM, em Karshule. Tudo para pesquisar o nosso novo tema.

Até AMANHÃ!!!

Batman Zavareze

Festival Multiplicidade

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